sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

UM DESERTO ENTRE OS AMIGOS

Se Deus me intimasse a optar entre o Hélio Pellegrino e a humanidade, eu daria a seguinte e fulminante resposta: — “Mor­ra a humanidade!”. E se fosse, não o Hélio, mas o Paulinho Men­des Campos, diria do mesmo jeito e com a mesma ênfase: — “Morra a humanidade!”. E, com isso, ficaria claro que, para mim, g amigo é o grande acontecimento, e repito: — só o amigo existe e o resto é paisagem. Os “outros” teriam assim uma estrita e secundária função paisagística.
Mas falei do Paulinho Mendes Campos e não sei se vocês o conhecem. Ou por outra: — conhecem, por certo, de crôni­ca e de verso. Todavia, não é o Paulinho impresso que impor­ta. Não. O sujeito que escreve deixa de ser ele mesmo. Uma sim­ples frase nos falsifica ao infinito. Um poema é uma pose. Por­tanto, deixemos intacto o Paulinho irreal do verso e da Man­chete. Pergunto se vocês o conhecem fisicamente, cara a cara, se já sofreram a sua áspera intimidade.
Sábado passado, estivemos no aniversário da Ilka Soares, na mansão de Walter Clark. (Havia até um mordomo solene, ereto, hierático, de filme policial.) E eu queria falar, justamen­te, do Paulinho da “festa”. Normalmente, o poeta, o cronista, não tem nenhuma dessemelhança especial. Ou por outra: — o que lhe dá essa dessemelhança é o perfil de Napoleão aos dezessete anos. Já passou dos quarenta, mas o seu perfil de medalha, de moeda, de cédula, continua com os mesmos de­zessete anos.
Mas como ia dizendo: — no dia-a-dia, é um terno, um do­ce, um tímido. Eu diria que tem uma estrutura frágil, delicada, sim, uma estrutura de palitos. É sentimental como uma ouvinte de novela. Daí porque qualquer referência ao seu nome exige o diminutivo. Seria falso chamá-lo de “Paulo”. Tem de ser para sempre Paulinho. Mas o Paulinho da “festa” é outro. E, nessa duplicidade, está todo o seu mistério.
Foi assim, sábado, na mansão do Walter. O Paulinho que lá chegou era ainda terno, era ainda triste. (Lembro-me que, certa vez, ele soube que um casal qualquer ia separar-se. O marido queixava-se de que a esposa gastava mais do que 25 amantes. E o desquite doeu, no Paulinho, como uma nevralgia pessoal. Por muitos dias, andou exalando uma cava de­pressão.) Mas o Paulinho chega, senta-se e conversa sobre o escrete. Enquanto ele falar do escrete, ninguém estará amea­çado, ninguém.
Dei a minha opinião, Paulinho a dele. Coincidimos em nos­sos pontos de vista sobre Rivelino: — um craque. Houve um momento em que me levantei, levado não sei por quem. Um dos convidados de Walter Clark me chamou, de lado, e pergun­tou: — “Você acredita em juiz ladrão?”. Referia-se ao assalto que sofremos contra a Tcheco-Eslováquia. Disse-lhe, com o maior descaro: — “Em juiz europeu ladrão, acredito”. O escân­dalo do outro foi total. No fundo, no fundo, achava que só há ladrões no Brasil.
Perdi um tempo imenso tentando demonstrar o seguinte: — o grande povo é cínico. Só o subdesenvolvido cultiva uns três ou quatro escrúpulos. Mas um alemão, ou francês, ou in­glês, ou norte-americano, não tem os nossos estreitos limites éticos. O juiz do jogo era alemão. E achou, com a maior boa-fé, que roubar brasileiro nunca foi defeito. O convidado do Wal­ter Clark já não dizia nada. Cravava em mim um olho de espan­to. Estive para dizer-lhe que considerava o desenvolvimento uma ignomínia.
Despachei o outro e voltei para o grupo anterior. E fui en­contrar um Paulinho mais eriçado do que as cerdas bravas do javali. Assim que me viu, começou: — “Você com o Tristão de Athayde” etc. etc. Era o Paulinho da “festa”. Imaginei: — “Vou sofrer”. E ele: — “Porque a polícia. Você não fala da polícia. O Tristão fala”. Com infinita estupidez, fui respondendo: — “Paulinho, a polícia gosta muito mais do Tristão de Athayde”. Protestou: — “Mentira”. E eu: — “A polícia jamais interditou uma frase, uma vírgula, um pio do Tristão. E a mim interditou seis peças e um romance”. Não paramos aí. E a nossa conver­sa foi tomando um jeito de pesadelo humorístico. O Paulinho da “festa” insistia: — “Certas atitudes, o Tristão não toma”. Tei­mei: — “Toma, Paulinho. O Tristão já saiu em defesa da polícia e contra uma obra de arte”. Contei-lhe que, na interdição de Álbum de família, o dr. Alceu deu inflamada entrevista; e lá di­zia que a polícia tinha todo o direito e, mais do que o direito, o dever de me interditar. Eu era um vago artista, um irrelevante poeta dramático, e vinha o Tristão açular a polícia contra um desgraçado texto.
E, então, o Paulinho saiu-se com esta: — “Isso é passado”. Retruco que o único presente era a nossa conversa ali; tudo o mais era passado. O amigo fez sarcasmo: — “censura não tem importância”. Achei que só a censura tem importância. E, súbi­to, a discussão começou a cair de nível. Paulinho afirmou: — “O Tristão é melhor do que todos os presentes”. E eu: — “Não sei dos outros. Sei de mim. E me acho melhor do que o Tris­tão” etc. etc.
Aí paramos. O Paulinho foi para a janela, que se abria para a noite. A aragem marinha soprava nos decotes. E eu vim sen­tar-me na primeira cadeira vaga. De repente, percebia que sou muito mais amigo do Paulinho do que pensava. E gosto de ser amigo, para sempre. Mas o trágico da amizade é a convivência. Talvez a solução fosse pôr um deserto entre nós e o amigo. Não ver o amigo, jamais; não ouvi-lo.
Mas a minha noite não terminara ainda. Ouço: — “O que é que acha do De Gaulle?”. Viro-me, estarrecido. Se me caísse nos sapatos uma cabeça-de-negro, não teria um pânico mais pro­fundo. Só as estagiárias do Jornal do Brasil é que costumam agredir com tais perguntas. Uma delas me telefonou e quis sa­ber: — “O que é que acha o senhor de Cristo?”. Imaginei que, assim como há um Sobrenatural de Almeida, existisse um Cris­to da Fonseca. Sondei: — “Qual deles? O Deus, o Jesus?”. Era mesmo o Deus, era mesmo o Jesus.
O que é que eu achava do De Gaulle? Olhei a bela senhora. De Gaulle, sim, De Gaulle. Podia responder assim: — “De Gaulle é o passado”. Outra resposta inteligente seria o inverso: — “De Gaulle é o futuro”. Qualquer grande homem pode ser chama­do, indiferentemente, de “passado” e de “futuro”. Eu não sa­bia o que dizer. Mas a dama estava, ali, inarredável. Só sairia da­li com a minha opinião. O Paulinho Mendes Campos continua­va na janela do Walter Clark. A cabeça pendida. Ninguém mais só na Terra. Viro-me para a senhora: — “Quer saber o que eu acho de De Gaulle?”. Disse-lhe: — “Bacana”.

[26/6/1968]

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