sábado, 17 de janeiro de 2009

A VACA PREMIADA

Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o brasileiro premiado. O inglês, não, nem o fran­cês. Um ou outro recebe qualquer prêmio com modéstia e té­dio. Quando deram a Churchill o Nobel de literatura, ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque e mamando o seu charuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo superior descaro.
E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro que, de repente, recebesse um telegrama assim: — “Ganhaste o prêmio Nobel. Gustavo da Suécia”. Pergunto se algum brasileiro, vivo ou mor­to, teria a suprema desfaçatez de mandar um representante, co­mo fez o Churchill? Por exemplo: — o meu amigo Otto Lara Resende. Se a Academia Sueca, por unanimidade ou sem una­nimidade, por simples maioria, o preferisse.
Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fasci­na. O Otto, prêmio Nobel. Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou o Érico Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: — qual­quer um de nós iria, a nado, buscar o cheque e a medalha. Nem se pense que faríamos tal esforço natatório por imodéstia. Pelo contrário. Nenhuma imodéstia e só humildade.
A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez, a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes, chegou a uma conclusão. Vi, tran­sido, quando colocaram no pescoço da vaca a fitinha e a meda­lha. Claro que a criança tem uma desvairada imaginação óptica. Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem.
Cabe então a pergunta: — e por que até as vacas brasileiras reagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações heredi­tárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustra­ções e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a ver­dade: — não encontramos pretextos pessoais ou históricos pa­ra a auto-estima.
Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Um simples “bom-dia” já nos gratifica. Nunca me esqueço de minha iniciação jornalística. Trabalhei num jornal que não pa­gava. Mas o diretor, um escroque perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso do que uma cocote, era o gênio do cumprimento. Não passava por um funcionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe sorrir, e sem lhe piscar o olho.
E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a própria remuneração. Fiz as divagações acima por­que assisti, no último sábado, à entrega dos prêmios do Museu da Imagem e do Som. A cerimônia ia ser televisada. Disse de mim para mim: — “Vamos ver se o brasileiro mudou”.
Fiz, preliminarmente, uma breve autocrítica. Eis o que me perguntei: — “Será que estou frustrado, ressentido, humilha­do, de não ser um deles?”. Há vinte anos, quando comecei mi­nha carreira, queria ter o meu nome no jornal de qualquer ma­neira e a qualquer preço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim mesmo. Assinava com um nome inventado e mandava publi­car. E, depois, vinha perguntar cá fora: — “Conhece esse sujei­to? Escreveu sobre mim. Não sei quem é”. Pois bem: — e co­mecei a entrar em todos os concursos de peças, de reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo mundo era premiado, menos eu. No primeiro ano, segundo, terceiro, eu estrebuchava de hu­milhação. Por fim, veio um doce e compassivo fatalismo. Repito: — “não ser premiado” é o meu hábito de vinte e tantos anos.
(Minto. Outro dia, recebi no Chacrinha o prêmio de me­lhor cronista esportivo de jornal. E a verdade é que reagi como brasileiro. Escolhi o meu melhor terno, a minha melhor grava­ta, o meu melhor sapato. Meia hora antes estava na televisão. Lá encontrei o João Saldanha, também contemplado. Vagando pelos corredores da tv Globo, à espera da nossa convocação, tínhamos, os dois, um ar indubitável de prêmio Nobel.)
Volto ao sábado. Sala Cecília Meireles. Como o governo da Guanabara estava ligado aos prêmios, compareceu o governador Negrão de Lima. Ele, em pessoa, faria a entrega. E, para maior ênfase do acontecimento, puseram lá uma banda de música. Um dos premiados era Oscar Niemeyer. Outro: Glauber Rocha; ou­tro ainda: Pelé.
Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa. A vaca já citada recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha, E nasceu nos seus dentes toda uma espuma; a gra­tidão escorria-lhe em forma de baba elástica. Eis o que me per­guntava: — como reagiria Oscar Niemeyer?
(Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pue­ril e terrível. Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar, a nado, o prêmio Nobel.) E, de repente, o ator Sér­gio Cardoso diz o nome de Oscar Niemeyer. A platéia quase veio abaixo. O nome de Pelé foi muito menos aplaudido. E, no en­tanto, para o gosto popular, as botinadas estão muito mais pró­ximas do sublime do que a arquitetura.
Na minha casa, eu adulava a minha úlcera com pires de lei­te. E não entendia mais nada. Por que esse amor súbito e ulu­lante por um arquiteto? Desde quando a arquitetura teve, no Brasil, um Frank Sinatra? Estava vendo a hora em que os pre­sentes, de pé, iam berrar como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ganhou! Já ganhou!”. Mas por que essa ovação de Cauby Peixoto? Era a pergunta que continuava sem resposta.
E, súbito, percebo toda a verdade. Não era o arquiteto, era o gênio. O povo não gosta das invenções plásticas de Oscar Nie­meyer. Abomina. O que o povo adora é aquele prédio do elixir de Nogueira, ali na Glória, perto do Relógio. O homem comum entende que a casa feita por Oscar Niemeyer não serve para dor­mir, amar, morrer ou simplesmente estar. Não importa. É gênio.
Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovação formidável. O grande público não gosta dos seus filmes, não en­tende seus filmes. Mas é outro gênio. Chamam-no de maluco. A figura que tenha essa lenda de insânia fascina o povo. Lembro-me de um conhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer, deslumbrado: — “Não entendi nada”. Estava gratíssimo ao filme e ao seu autor. O povo desconfia do que entende, des­confia do que gosta. E Glauber Rocha, ao surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagem do que as cerdas bravas do javali.
Subiu a escadinha do palco com um passo ágil, elástico, quase alado. Mas nem Glauber, nem Oscar Niemeyer fizeram a concessão de um sorriso. A cara do Niemeyer estava fechada, inescrutável, como certas máscaras cesarianas. (Ah, como o bra­sileiro precisa ter um gênio à mão. Sim, para apalpá-lo, farejá-lo. A simples existência de um gênio patrício já nos permite um mínimo de auto-estima.) E, por fim, o Luís Carlos Barreto, o for­midável animador do Cinema Novo, foi receber o seu. Subin­do, disse, à queima-roupa, ao governador: — “O dinheiro já saiu”. E aí, nessa voracidade jucunda, estava todo o Brasil.

[23/1/1968]

Um comentário:

Anônimo disse...

KKKKKKKKKKKKK!!!!!!

estive pensando: e se fosse nos dias atuais, como será que reagiria nosso mestre Nelson????

melhor música, por exemplo????

bj, Gisele