quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

BRAVOS, BRAVÍSSIMO!

Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos ou mais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo. Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xí­cara, como qualquer um de nós. Não. Derramava o café no pi­res e bebia do próprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia um desses prazeres jamais concebidos.
Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: — por que o pires e não a xícara? Até que, na madrugada de ontem, resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanhar leite na geladeira. E, como o velho e finado Ar­lindo, bebi um pires de leite. Por uma dessas ingenuidades fa­tais, eu estava esperando um efeito mágico. Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum sabor encantado e repito: — o lei­te em pires, copo ou xícara é a mesma bebida hedionda.
E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela da madrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo Paulo Francis. Já nos chamamos de “palhaços”, de “analfabetos”, de “burros”. Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por me traíres. Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o tercei­ro ato, a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e que­ria fuzilar o texto.
(O patético, ou sublime, como queiram, é que eu repre­sentei. Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior ator do mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada, quis ser solidário com a obra, o produtor, o dire­tor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia fala­va mais do que o elenco. Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Passou os três atos me chamando de “tarado”. E outras senhoras, e outros ca­valheiros, me xingavam, o tempo todo, em cena aberta.)
E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finas subindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o Paulo Francis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — “Burro! Burro!”. Contam-me que o Edmundo Moniz protes­tava: — “Não faça isso! Não faça isso!”. Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaia estimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendo dar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamou de “burro”.
Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derra­me e que eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francis não pensou duas vezes: — foi para a redação e escre­veu uma página crispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era um pobre ser, de intensa, desesperada fragi­lidade. O meu caso clínico não foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive a visão de sua dilacerada, enver­gonhadíssima bondade. Era um falso cínico.
Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, sem um “olá”, sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do José Lino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópe­ra. Houve um desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma ra­jada de carusos, de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo. E, súbito, o Paulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separou e o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José Lino Grünewald somos loucos por ópera.
Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, ele desapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo uma densidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — “O Paulo Francis entrou para um convento”. Imaginem: — o Paulo Francis franciscano, beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José Lino Grünewald. E o meu amigo solta a notícia: — “O Paulo Francis chegou”. Estava viajando.
Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também uma forma de solidão. Pergunto ao José Lino: — “E que tal?”. O Pau­lo Francis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Uni­dos. Não sei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que o assombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos Esta­dos Unidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos os limites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental.
Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde. Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não está preparado para ler Le Monde. Quanto a Sartre, não sei por que expulsaram os seus textos. Mas o que importa é o sim­ples fato: — a Alemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditadura analfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, e jornais.
Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francis tenha feito a pergunta dramática: — “E aqui? E aqui?”. Co­mo se comportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e rea­giram os nossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesse no aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campo de São Cristóvão. Foi um ato longamen­te concebido e amorosamente executado. Tratando-se do “Dia do Trabalhador”, as esquerdas aproveitaram a data universal pa­ra uma demonstração de força.
O d. Hélder fala muito em “conscientização”. Outros exal­tam “a maturidade política” do nosso povo. E há, por todo o Brasil, um furioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do cam­po de São Cristóvão devia dar, segundo os cálculos mais mo­destos, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos.
E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululan­tes começavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiam multidões ventando fogo. E havia, também, uma tem­pestade de bandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendaval humano havia de imaginar que começava, aqui, outra revolução francesa. D. Hélder diria que era a “conscien­tização”. E era a “conscientização”. Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Em vez de ir para o campo de São Cristó­vão, o povo rumava para o Estádio Mario Filho.
Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — “E o comício?”. Diria eu: — “Houve o comício”. Insistiria o Paulo Francis: — “Não foi ninguém?”. Resposta: — “Foi. Comparece­ram os oradores”. Se o Paulo Francis perguntasse — “E o públi­co?” — eu responderia que os oradores eram oradores e público. Faço uma idéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarca no Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra “bravos”, “bravíssimo”, para a própria retórica.
[9/5/1968]

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