quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

O CACHORRO ATROPELADO

Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem sei quando. Escapa-me também o nome do autor. Se não me enga­no, era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a in­fluência da distância nas leis da emoção. Vejamos o que dizia o cronista. Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato de ser na nossa porta, teria mais apelo emocio­nal do que Hiroshima.
Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceu outro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas há entre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distância infinita, espectral. Sem contar, além da distância geo­gráfica, a distância auditiva da língua. Ao passo que o cachorro é atropelado nas nossas barbas traumatizadas. E mais: — nós o conhecíamos de vista, de cumprimento. Na época própria, vía­mos o brioso vira-lata atropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lambera as nossas botas.
E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou. Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atro­pelado. Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato uma densidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos uma relação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiro­shima, ou o Vietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância.
Não sei se estou dizendo o óbvio. Não importa. Toda a his­tória humana ensina que só os profetas enxergam o óbvio. Seja como for, achei a crônica citada de uma sagacidade deliciosa. Mui­to tempo depois, sinto, na própria carne e na própria alma, a in­fluência da distância nas leis da emoção. Imaginem que recebo de Natal este súbito e inapelável telegrama: — “Sua Peça ‘Toda Nudez’ Quase Pronta, Elenco Ensaiando, Artistas Unidos Grupo Vencedor Festival Pascoal, Censura Proíbe Em Todo Território Nacional. Que Podemos Fazer? Abraços etc. etc.”.
Este o telegrama. A princípio, a proibição me pareceu espantosamente irreal. Toda nudez será castigada foi levada em 1965 no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Não sofreu o corte de uma vírgula. Ao terminar o ensaio geral, os seus três censores, inclusive Ayres de Andrade, aplaudiram, de pé, o texto e o espetáculo. E por que, e a troco de que, de repente, vem a censura e impõe uma interdição bestial?
Só vejo duas hipóteses: — ou é má-fé cínica, ou obtusidade córnea, ou ambas. Ora, eu sou o sujeito mais próximo de mim mesmo e de minha obra. E a coisa repercutiu brutalmente em mim. Se me perguntarem qual foi a minha primeira reação, eu diria: — a vergonha de ser brasileiro. Tive, sim, uma vergo­nha total e como que o arrependimento de ter nascido aqui.
Estou, porém, diante do fato consumado. O telegrama faz a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “Que faremos?”. Sim, que faremos? Agora, vou ficar esperando um manifesto, uma passeata e uma greve. Tenho vinte e tantos anos de vida auto­ral e sofri seis interdições (cinco peças e um romance). Por uma singular coincidência, nas seis oportunidades, não mereci a so­lidariedade de ninguém. Álvaro Lins, em plena atividade críti­ca, limitou-se a dizer: — “Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um caso de polícia”. Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade à polícia. No fundo, os nossos in­telectuais achavam que eu era mesmo obsceno e que devia ser mesmo interditado.
Mas as coisas mudaram. E, se as coisas não mudaram, mu­dou o dr. Alceu. E espero um artigo do dr. Alceu. Todo santo dia hei de comprar o Jornal do Brasil. Quero ver o nosso Tristão de Athayde, com a sua nobilíssima indignação, fulminar o crime contra a inteligência. E também penso na classe teatral, que é a minha. Vocês não são de teatro, nem sabem nada. Mas a classe teatral é um comício nato. Nas suas assembléias, há iras sublimes. Pois eu gostaria de ver as indignações da classe tea­tral salvando a minha peça.
Recentemente, entrei numa greve dos meus colegas. Levei-lhes a minha comovida solidariedade. E mais: — sentei-me na escadaria do Teatro Municipal. Embora não visse em tal ato ne­nhum heroísmo, sentei-me com os outros. Estavam todos indigna­dos; hipotequei-lhes a minha indignação. O motivo da greve era também a interdição de uma peça, ou duas, não me lembro mais.
Em seguida, houve uma nova greve. Por que, já não sei. A minha solidariedade tem um automatismo inexorável. Juntei-me aos colegas. Todos os teatros deviam cerrar suas portas. E só um permaneceu escandalosamente aberto: — o da sra. Eva Todor. Imediatamente, despachou-se um piquete aguerrido. A atriz estava no palco representando e ganhando o pão. Impedi­ram-na de representar e de ganhar o pão.
Vejam vocês como há, de autor para autor, dessemelhanças irritantes de sorte. A classe trata os outros a pires de leite. E eu, mais interditado do que qualquer um, sempre estive em crudelíssima solidão. Alguém dirá que falo assim por despeito, por ressentimento. Não nego. Sou despeitado e sou ressentido. Mas tenho atenuantes. Nas minhas seis interdições, ninguém im­pediu a sra. Eva Todor de trabalhar. Quero crer que chegou o grande momento. Interditaram Toda nudez será castigada. É hora, pois, de mandar a sra. Eva Todor devolver o dinheiro das entradas.
Realmente, mais que uma assembléia da classe, mais do que uma greve, estou interessado numa passeata. Sim, um desfile contra a interdição de Toda nudez será castigada. Há, em qual­quer brasileiro, uma alma de cachorro de batalhão. Passa o ba­talhão e o cachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional.
Mas já não sei se quero mesmo a passeata. Em passado recente, houve um desfile patético. Cem, duzentos cartazes dan­do morras ao imperialismo. O diabo é que, em vez de morte, estava lá escrito “muerte”. Imaginem se há a passeata em favor da minha peça. Cem, duzentos cartazes dando morras à censu­ra em castelhano. Em tal caso, eu teria também vergonha de ser brasileiro.

[13/5/1968]

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