segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

A MORTE DO TEATRO

Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. Ninguém an­da só, ou por outra: — a única solidão que conheço, em nossa comunidade, sou eu mesmo. No meio dos meus colegas, eu me sinto só, e tão só, como um Robinson Crusoe sem radinho de pilha. Ao passo que os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contra-regras, e os maquinistas são a classe.
Não vejam, porém, nas minhas palavras, nenhuma insinua­ção restritiva. Deus me livre. Diria mesmo que considero a mi­nha solidão, não uma virtude, mas uma incapacidade. Bem que eu gostaria de ter um mínimo de vocação associativa. Gostaria de ser ninguém ou, por outra, ser apenas grupo, classe, reunião, assembléia, discurso!
Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacil­da Becker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la? Outrora, eu diria: — “Olá, Cacilda”, ou “Bom dia, Cacilda”, ou “Tudo azul, Cacilda?”. Sim, houve um tempo em que Cacil­da era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenó­grafo é um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: — “Olá, Comissão”, “Olá, As­sembléia”, “Olá, Passeata”.
Dias atrás, ao sair de casa, encontro um ator patrício, à es­pera de condução. Ergueu o gesto e anunciou: — “Vou à pas­seata!”. Disse eu não sei o que ou, melhor, não disse nada, e ele começou a falar. Juntou gente. Não era um ator, era um Dis­curso, era uma Comissão, era uma Assembléia. Dizia “nós” e não “eu”. E, de repente, entraram, de roldão, o Vietnã, Mao Tsé-tung e Guevara. Com mais um pouco, ele sairia por aí vi­rando carros, arrancando paralelepípedos e incendiando a Bol­sa (tal como em Paris).
E daí a minha admiração pela classe. Em outra ocasião, houve, em São Paulo, um “seminário de teatro”. Era de teatro e, como dramaturgo, lá fui eu. Imaginei que íamos discutir representação, técnicas, décor, luz, textos etc. E, súbito, um alie­nado qualquer falou em dramaturgia. Quase o lincharam. Um latagão enfiou-lhe o dedo na cara, aos berros: — “Pensa que nós estamos aqui pra discutir teatro?”. O quase-agredido bai­xou a cabeça, lívido de pusilanimidade. Sentou-se no seu canto e lá ficou, numa solidão de comício de 1° de Maio.
Eis o que eu queria dizer: — entendo, como ninguém, as posições da classe. Ótimo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenha uma ênfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de Hi­no Nacional. A política é a grande linguagem do nosso tempo. E cada qual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toque ideológico. Tudo isso é certo e eu concordo. Mas es­tão acontecendo coisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade. Não sei se vocês conhecem o caso de Norma Bengell. O que aconteceu com a famosa atriz tem mais suspense e mistério do que qualquer Hitchcock. Os jornais já comenta­ram, a tv cobriu, o rádio deu. Vamos aos fatos.
Um jornalista norte-americano resolveu assistir à peça de Norma Bengell. Ouviu dizer que se tratava de atriz notável, um valor internacional, e quis ver. Foi à bilheteria, adquiriu e pa­gou os ingressos, deixou uma propina e foi à vida. Na hora pró­pria, ou melhor, com meia hora de antecedência, estava na porta do teatro. Soube, então, que não havia espetáculo. Deixou pas­sar três ou quatro dias e voltou à bilheteria. Perguntou, com so­taque: — “Há espetáculo?”. Havia. E, novamente, comprou os ingressos, pagou e deixou uma propina. Mais tarde, e antes de sair de casa, telefonou para o teatro. Fez a honrada pergunta: — “Há espetáculo?”. Havia. Lá se mandou ele com todos os con­vidados. Chega e sabe: — não havia espetáculo.
A partir de então, passou a desconfiar que há qualquer coi­sa de errado, não só no teatro, como no próprio Brasil. Deixou passar mais uns cinco dias. E volta à bilheteria. Pergunta: — “Há espetáculo?”. Havia. Pela terceira vez, comprou os ingressos, deu a propina e partiu. Dez minutos antes de abrir o pano, liga para a bilheteria e pergunta: — “Há espetáculo?”. Resposta: — “Há”. O desgraçado pergunta: — “Posso ir?”. E do outro lado: — “Pode vir”. O americano junta os convidados e chega ao tea­tro em cima da hora. E o apunhalam com a notícia: — não havia espetáculo. Desta vez, o que era simples e difusa angústia tornou-se pânico total. O homem e os convidados começaram a achar que o Brasil está louco.
Mas não desistiu. Deixou passar mais dois dias. Ei-lo de volta ao bilheteiro. Desta vez, os convidados o acompanharam, to­dos mortalmente interessados naquele suspense insuportável. Cada um perguntou: — “Há espetáculo?”. A resposta foi uma só: — “Sim, senhor”. Desta feita ninguém foi para casa. Todos se reuniram num boteco próximo e lá ficaram, esperando a ho­ra de subir o pano. Um processo de angústia instalara-se no gru­po. E, quando chegou o momento, lá foram eles. Ou por outra: — primeiro, foi um voluntário fazer um reconhecimento. Infor­maram que havia o espetáculo. Voltou com a grande notícia: — “Há espetáculo”. Todos se juntaram, numa euforia feroz, e foram para a porta do teatro. Não havia espetáculo, simplesmen­te não havia espetáculo.
Não era mais possível nenhuma dúvida ou sofisma. Aque­les sujeitos se convenceram e, para sempre, do seguinte: — não haveria espetáculo nunca mais, nunca mais. Daqui a duzentos anos, na hora de subir o pano, virá um funcionário avisar: — “Não há espetáculo”. O tal americano está convencido de que os nossos atores, as nossas atrizes, não representam, de que os nossos diretores não dirigem, de que os nossos cenógrafos não fazem cenários.
E talvez seja esta a santa verdade. Dizia-se que o Brasil é um país racional. Já não sei, e tenho as minhas dúvidas. Os ato­res não representam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta, poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, fil­me. Sim, as coisas que devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — e por quê? Primeiro, porque tanto o tea­tro, o romance, a poesia, a pintura ou a música vivem de umas tantas ou quantas individualidades fortes, crispadas, miguelangelescas. E hoje o artista prefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembléias, discursos e passeatas. O artista é um cadáver.
[14/7/1968]

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