domingo, 22 de fevereiro de 2009

A MULTIDÃO AFRODISÍACA

Nunca me esqueço de uma conversa que tive, há tempos, com o Plínio Marcos, o autor mais representado do Brasil. Ho­je, é difícil, senão impossível, descobrir um teatro que não te­nha o seu nome, na frente, como uma manchete. Mas eis o que me disse o Plínio Marcos: — “Eu queria representar no Maraca­nã, para 200 mil pessoas!”.
(Digo Maracanã, e com que remorso o digo. O Maracanã é muito mais Mario Filho do que Maracanã.) Mas ao ouvir falar em 200 mil pessoas, concordo: — “Boa platéia, boa platéia!”. Era uma noite fria. O hálito do mar gelava os edifícios. E, en­tão, o nosso dramaturgo exaltou-se de vez. Sonhava aos ber­ros: — “A minha peça seria a partida principal. E o Fla-Flu, a preliminar”. A hipótese o fascinou. Soluçava: — “O Fla-Flu co­mo preliminar da minha peça!”.
Uma semana depois, vou a um sarau de grã-finos. Súbito, um dos presentes, já bêbedo, começou a falar em morte e, em seguida, na própria morte. Dizia o pau-d’água de luxo que não há ninguém mais exibicionista do que o defunto. O morto quer platéia. E o ideal seria que a nossa morte fosse preliminar do Fla-Flu. E o sujeito, em vez de morrer para meia dúzia de fami­liares e vizinhos, teria um velório de 200 mil pessoas.
Foi aí que percebi, subitamente, toda a verdade. A nossa utopia mais fascinante é a platéia do Fla-Flu, de Flamengo x Vasco. Sim, o homem moderno gostaria ser épico, sublime, obs­ceno e romântico para multidões gigantescas. E já me ocorre uma objeção contra a preliminar do Fla-Flu. Ei-la: — não há sa­cadas no Estádio Mario Filho. A superioridade das últimas pas­seatas sobre as massas do futebol está, exatamente, nas sacadas.
Se não entendem o que estou dizendo, passo a explicar. Hoje, não há mais terça-feira gorda e, repito, a terça-feira gorda morreu até o último vestígio. Mas houve um tempo em que os préstitos paravam a cidade. As pessoas alugavam sacadas para ver as grandes sociedades. Ao passo que, em nosso tempo, as sacadas deixaram de ter uma função estritamente contemplati­va e assumiram o seu destino histórico (desculpem esse tom de editorial do Jornal do Brasil).
Sim, as sacadas foram, nas recentes passeatas, a grande revelação. Vocês se lembram. Embaixo, o grande desfile estudantil. Imagino que tenha sido uma surpresa até para os jovens. E, de repente, sem aviso prévio, as sacadas passaram a ter uma ação política, ideológica, libertária como as barricadas. Elas come­çaram a pensar, a ousar idéias, gestos, frases, sentimentos, ber­ros. Instantaneamente, todos perceberam que as sacadas eram barricadas aéreas, aladas, superpostas. Lá de cima, chovia pa­pel picado, e mais, listas telefônicas, processos, cadeiras. À dis­tância, tinha-se a impressão visual de que o papel picado era neve de Papai Noel. Nunca me esqueço de um décimo andar que co­meçou a nevar cinzeiros e até baldes. De mais a mais, as saca­das aplaudem como as frisas e os camarotes da ópera. E os que passam cá embaixo simplesmente passam, e não fazem mais nada senão passar — têm uma sensação de ópera sem lustre, sem torrinhas, sem libreto e sem cafezinhos nos entreatos.
E, de repente, a sacada passou a ter um papel decisivo nas passeatas. É uma excitação a mais, uma espécie de afrodisíaco ideológico, sei lá. Ou por outra: — não se trata bem de ideolo­gia. A sacada traz um tremendo apelo à nossa vaidade. Pode pa­recer um sentimento menor, quase vil. Nem tanto, nem tanto. A vaidade está inserida na complexidade dos santos, dos heróis, dos mártires. São centenas, milhares de sacadas que pendem so­bre nós e atiram sobre nós listas telefônicas. Visualizem a cena: — o sujeito vem passando. E, súbito, cai-lhe no crânio, baixan­do do 12? andar, um cinzeiro. O sujeito há de sentir-se perfei­tamente sublime.
Mas falo, falo e não digo o essencial. Hoje, queria pingar duas palavras sobre a inteligência nas passeatas. Reparem: — qualquer um pode falhar, menos o intelectual. Não houve chu­va em nenhuma marcha. Mas, fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto e já estaria ele, firme, inarredável, inexpugná­vel. Mas escrevi “intelectual” e cabe uma especificação: — falo do escritor, do romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que depende sempre de um leitor. Não se pode pluralizar o leitor. Mesmo o best-seller de 500 mil exemplares é lido por um, fatalmente por um. Por outro lado, o leitor é o ausente, o invi­sível, o intangível. Portanto, o romancista tem uma inconsolá­vel nostalgia de massas.
Vimos que, no sarau de grã-finos, um pau-d’água queria fa­zer, da própria morte, a preliminar do Fla-Flu. Duzentas mil pes­soas haviam de recolher o seu último suspiro. O dramaturgo Plínio Marcos gostaria de representar no ex-Maracanã para as mesmas 200 mil pessoas. E ninguém escapa à fascinação numé­rica da multidão. Mas o escritor não tem possibilidade nenhu­ma de massas. Bem que gostaria de ser lido, no Estádio Mario Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.
Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul crispa a mão no meu braço: — “Olha lá! Ali”. Virei-me, e confesso o meu deslumbramento. Primeiro, vi a ta­buleta: — “Intelectuais”. Sempre tive a impressão injusta, a im­pressão iníqua de que há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço reservado à “Inteligên­cia”, se concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me ocor­rera a hipótese paranóica de que o Brasil tivesse tantos intelectuais. Por um momento, eu e o Raul Brandão ficamos só olhando, esbugalhados de assombro. E admiramos a disciplina daqueles finos espíritos. Ninguém se mexia. Todos quietinhos, como se estivessem engradados.
Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia: — “Viste como o Brasil é inteligente?”. De fato, a evidência nu­mérica estava a demonstrar que somos uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ou­vidor de olho no romancista. E em outros romancistas, e en­saístas, e poetas, e cronistas, e sociólogos (cada vez me conven­cia mais da insuportável inteligência do Brasil). Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce. Vol­to ao primeiro romancista. Livrara-se da tirania, numericamen­te humilhante, de um único leitor. Tinha sua platéia de Fla-Flu. E estava magnetizado pelas sacadas. Um catálogo de telefone, atirado de um 13° andar, podia rachar-lhe o crânio. Morreria feliz. E como transpirava de glória e de esforço físico. Vi o suor pingando e, repito, o suor chorando na sua cara gorda.
[12/7/1968]

Nenhum comentário: