sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O ANTITEATRO

Ah, gosto muito do Sábato Magaldi, o crítico paulista. Lem­bro-me do nosso encontro, há anos, aqui no Rio, na esquina de Senador Dantas com Evaristo da Veiga. Eu não o via há me­ses. E ele me pareceu tão magro e tão só. O que me impressio­nou mais, porém, foi o olho do amigo, e repito: — o olho de uma doçura intensa, quase insuportável. Com um retoque aqui e ali, o Sábato Magaldi seria um santo, o primeiro santo da críti­ca teatral.
Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia falar da nossa discussão sobre cinema. Era a época dos primeiros filmes coloridos. Há entre mim e o caro amigo uma série de cordiais abismos. Quando escreve sobre o meu teatro, sinto que não é o crítico, mas o amigo, quase o irmão (quero crer que ele sempre reage como o amigo e o irmão das coisas). Eu era a favor do filme colorido, e Sábato, contra. Ele só entendia o preto-e-branco.
No meu espanto, perguntei-lhe: — “Mas que diabo! Você é contra a cor?”. E eu não compreendia tal ressentimento vi­sual. Discutimos uma boa meia hora. E, até o fim, o Sábato Ma­galdi foi o mesmo e brioso paladino do preto-e-branco. Dizia eu: — “Vem cá, Sábato, vem cá”. E insistia: — “Mas que diabo te fez o amarelo? E o verde? E o azul? E o roxo?”. Lembrei-lhe que Van Gogh gostava tanto do amarelo. O meu último argu­mento foi este: — “Você odeia o arco-íris?”. Não o dissuadi. Hoje, imagino que o Sábato deva abominar também o poente do Leblon porque a natureza não o fez em preto-e-branco.
Falei do cinema para chegar ao teatro. Quando começou o cinema, houve o vaticínio mundial: — “O teatro vai morrer”. E mais tarde surgiu a televisão. Imediatamente, outros profetas anunciaram também que a televisão era o fim do teatro. Vejam como o teatro vive de mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a tela cinematográfica seja miguelangesca. (Contra a oposição solitária e ressentida do Sábato Magaldi, a cor vingou triunfalmente.) Mas o teatro está vivo, o tea­tro é um cadáver salubérrimo.
Não sabemos se o cinema morrerá um dia, se outras técni­cas vão devorar a televisão. Quanto ao teatro, quero crer que já demonstrou a sua eternidade. Cabe então a pergunta: — e por que sempre existirá um palco e sempre existirá um elenco representando? Tem sido assim e assim será, para sempre. Pode parecer que o “grande artista” explica essa prodigiosa continui­dade. Nem tanto, nem tanto. A eternidade do teatro depende mais do canastrão.
Foi mais ou menos isso que eu disse, no telefone, ao Sábato Magaldi. Imaginem vocês que o crítico ligou para mim, e vamos e venhamos: um interurbano é sempre uma altíssima demons­tração de afeto. Lisonjeado, balbuciei: — “Quanta honra!”. Não é sempre que um crítico, e dos mais lúcidos, e dos mais agu­dos, procura um autor. Conversa daqui, dali, e o Sábato acaba pedindo: — “Por que é que você não faz uma entrevista ima­ginária com a Cacilda Becker?”. Foi aí que, dentro do meu pon­to de vista, expliquei que a Cacilda tinha um defeito: — era “a grande atriz”. O Sábato não entendeu: — “Se é grande atriz, melhor”. Reagi: — “Pior”. E expliquei que é o canastra que, inversamente, nutre a continuidade teatral. O “grande ator” é um para 10 mil. Só a massa de medíocres pode alimentar mi­lhares de elencos e milhares de repertórios.
Todavia, o Sábato, com sua bondade pertinaz e persuasiva, insistia: — “Pelo amor de Deus, faz a entrevista imaginá­ria com a Cacilda. Te peço como amigo”. Eu preferia a ca­nastrona, muito mais representativa do que o gênio. A Duse ou Sarah Bernhardt é um corpo estranho dentro de sua geração. Mas o Sábato pedia; e quem, no céu e na terra, pode resistir ao Sábato? Suspirei: — “Está bem. Você manda. Vou entrevistar a Cacilda Becker”. E, antes de me despedir, fiz o apelo: — “Me abençoa, Sábato, me abençoa”. E o amigo, em sua infinita mi­sericórdia, me abençoou.
Saí do telefone, isto é, não saí do telefone. Desliguei e, imediatamente, disquei para 01. Feita a ligação fulminante, uma voz feminina atende. Peço: — “Quer-me chamar a Cacilda?”. A resposta foi taxativa: — “Não mora aqui”. Protesto: — “É esse o número, minha senhora. Cacilda Becker. Mora aí”. E a outra: — “Engano”. E, súbito, desconfio da verdade. Berro: — “É você que está falando, Cacilda? Sou eu, Nelson!”. Há uma pausa dra­mática. Finalmente, explode a voz feminina: — “É mesmo, é mesmo! Agora me lembro. Cacilda Becker. Eu era Cacilda, fui Cacilda. O sobrenome é Becker? Fui Cacilda Becker”. A con­versa estava meio alucinatória. Numa impressão profunda, per­gunto: — “Está-me ouvindo, Cacilda? Esteja, hoje à meia-noite, no terreno baldio. Você vai-me dar uma entrevista imaginária. Entendeu? Uma entrevista imaginária, na presença da cabra va­dia”. A grande atriz pluralizou: — “Lá estaremos”. E eu: — “Boa noite”. Ela respondeu em voz pungente, em voz plangente: — “Boa noite”.
Às dez para meia-noite, estou eu no terreno baldio. Tomei todas as providências. Reuni os gafanhotos, sapos, corujas, caramujos e minhocas. Fui de um em um, pedindo pelo amor de Deus: — “Modos, hem; modos!”. E, súbito, vem correndo um caramujo: — “Está chegando a passeata”. Pulo: — “Que pas­seata? Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker. Só a Cacilda e mais ninguém”. Mas era a estarrecedora verdade. Ao longe, empunhando archotes, vinha a pas­seata. E, no meio, hirta, sonâmbula, vestida de Ofélia, pude ver a minha entrevistada, Cacilda Becker.
Aterrado, esperei aquela massa ululante. Ouvia-se o coro: — “Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!”. O vozerio subia aos céus. Lá em cima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeiros sobre os manifestantes. A quinze metros do local, o Vladimir Palmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — “Classe teatral!”. Silêncio. E o Vladimir: — “Estamos cansados. Vamos sentar”. A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líder deixou passar cinco minutos; e comanda: — “Já descansamos. Vamos marchar!”. E todos marcharam os quinze metros que faltavam. Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda: — “Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eu só convidei você, Cacilda!”. E a atriz: — “Eu não sou Cacilda. Sou a passeata!”. Lá estava Paulo Autran: — “Você, Paulo Autran, ao menos você, é Paulo Autran?”. Resposta: — “Sou uma assembléia!”. Ao lado, vi o Ferreira Gullar: — “Ferreira, diga, berre: — eu sou Ferreira Gullar!”. Retruca: — “Eu sou um abaixo-assinado! Sou uma comissão de intelectuais!”. Em seguida, puxou um isqueiro e incendiou um exemplar de A luta corporal. Vozes repetiam: — “Sou um comício! Sou um panfleto! Sou a Classe!”. Cada qual era ninguém. Olho aquelas caras. Todos tinham perdido a noção da própria identidade. Recuo, apavorado. Uma coruja rola com ata­que. E, então, a marcha continua. A massa coral repetia: — “Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!”. A cabra vadia veio sentar-se no meio-fio e começou a chorar. As estrelas atiravam catálogos te­lefônicos sobre a passeata. Foi um caso sério.
[25/7/1968]

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