sábado, 28 de fevereiro de 2009

AS CABEÇAS ROLANTES

E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens da França começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e a incendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos os idiomas. Ninguém entendia nada. A primeira Revolução Fran­cesa fora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se Maria Antonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisas aconteciam e por que rolavam as cabeças.
Mas a recente agitação estudantil teve um defeito indesculpável: — faltou-lhe o Terror. O mundo ainda faz a pergunta sem resposta: — “Onde estão as cabeças cortadas?”. Simplesmen­te, não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, co­mo não havia gasolina, ninguém morria, nem atropelado.
Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eu diria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosa francesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm um insuperável requinte estilístico. Além de arrancar a capa de asfalto e pôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas fra­ses. Uma dela dizia assim: — “É proibido proibir”. Houve um dia em que todos os muros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berro vital: — “É proibido proibir”.
E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia de estudantes, levantou-se um barrigudo: — “Quero falar. Sou um capitalista”. Um jovem líder se levanta: — “Fala o camarada capitalista”. E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poeta Aragon pede a palavra. Um estudante diz: — “Aqui, qualquer um pode falar, inclusive o último dos traidores”. Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia, como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.
Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre no lírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filó­sofo esteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meio indigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como se fôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma de suas conferências. Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobri que há, sim, admirações abjetas.
Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E os estudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houve conversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica in­dulgência. Por fim, o gênio levantou-se, humilhadíssimo; dis­se: — “Vocês têm mais imaginação do que eu”. Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens o enxotaram e assim começou a solidão de Sartre.
Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mes­mo a do general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. A jovem massa levava cartazes assim: — “Fora De Gaul­le”, “De Gaulle Assassino”, “Morte para De Gaulle”. O general estava fora do país. Sim, o mito passeava. Quando voltou à Fran­ça, declarou para o seu povo: — “Eu sou a Revolução!”. Foi um espanto mundial. E todos sentiram que De Gaulle era o últi­mo “eu” do século. Olhem o nosso mundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro “eu”. E o herói setuagenário pare­ce um momento da insânia humana. Só um louco, em sua da­nação, pode-se julgar um “eu”.
Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil. Antes, porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer Maria Rilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momento do epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente “a volúpia de ser ninguém”. Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, como De Gaulle, que se imagina “eu”, não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a sua dessemelhança genial.
Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. O que me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nosso teatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o ób­vio. O que eu chamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes de começar. Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensão criadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nos­sa tragédia. Toda uma geração de autores, diretores, atores pa­recia saturada de potencialidade.
Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o pro­cesso teatral. Falei do “nascimento da tragédia” no Brasil. E o que aconteceu foi espantoso: a “tragédia brasileira” ainda não nasceu e já está decadente. Entendem? Decadente antes de nas­cer. Todo o maravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se corrom­peu no show idiota. Mas há pior e, repito, há pior. O show ain­da tem uma relação com o teatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizes abandonam o palco. Cabe então a per­gunta: — e onde estão eles?
Cada qual assume a forma impessoal, numerosa e irresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto, da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos e só odiamos em massa. Sim, estamos todos massificados. E ca­da um sente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser nin­guém. O sujeito se dissolve na passeata, na assembléia, na una­nimidade. E ninguém faz as coisas simples e profundas que o teatro exige. Em vez de realizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila da Cinelândia à Candelária. E basta.
E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Mor­reu a partir do momento em que nos politizamos. Felizmente, a nossa traição ao “drama brasileiro” tem nobilíssimas razões e, eu diria mesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem as representamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema da fome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo, Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falha­ram, por azar, inépcia, incompetência, má-fé, corrupção. O que não acontece com a Classe Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia. Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos, atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade.
[26/7/1968]

Nenhum comentário: