terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O ESQUECIDO

Era um escritor católico. Há um mês, já com sessenta e pou­cos anos, caiu doente. Os sintomas eram vagos, incaracterísticos, triviais. Desde o primeiro momento, porém, foi varado por uma certeza inapelável: — “Vou morrer”. Não teve medo da morte. Morreria mil vezes, se fosse o caso. Sua angústia era es­ta: — ser ou não ser esquecido.
Piorava, de quinze em quinze minutos. E começou o desfi­le de médicos. Fez, à queima-roupa, a pergunta cruel: — “Dou­tor, quanto tempo dura?”. Como era um médico da família, o outro fingiu, com nobre descaro, um otimismo impossível. Riu: — “Mas que é isso? Você vai ficar bom”. O doente odiou o mé­dico e não perguntou mais nada. Olhava para a. mulher e pensa­va: — “Vai-me esquecer”. Seria esquecido pela mulher, filhos, amigos e vizinhos. Uma tarde, apanhou um jornal. Olhava na manchete sem ver; e imaginava que, no aniversário de sua morte, nenhum jornal pingaria uma linha sobre sua memória.
Fui, um dia, visitá-lo. Disse-me, então, que descobrira um remédio contra a insônia (a doença tirara-lhe o sono). Durante a madrugada, enquanto os outros dormiam, distraía-se imagi­nando o próprio velório. Suspirou: — “Ah, o pior na capelinha não é a capelinha. Nem os círios elétricos”. O pior, segundo ele, era um pequeno bar que lá funcionava. Aí estava a impiedade total. A morte tinha, por fundo, o alarido de xícaras e pi­res. A dois passos do sagrado, do eterno, parentes, amigos, curio­sos pediam ou um guaraná ou um grapete, ou uma coca-cola, ou um sanduíche.
Quando me despedi, já começava a dispnéia pré-agônica. Mas ainda me disse, sem rancor, apenas informativo: — “Você vai-me esquecer”. Neguei, vermelhíssimo da própria mentira: — “Absolutamente. Você pensa que... Ora!”. A dona da casa levou-me até à porta. Passei por uma sala e eis o que vi: — dois filhos do moribundo jogando futebol de botão. E me ocorreu uma reflexão a um só tempo cruel e vil: — “Aqueles ali já es­queceram”.
Lá fora, tomei o primeiro táxi. Disse: — “Cidade”. E que euforia quando o carro pôs uma distância progressiva entre mim e a agonia, entre mim e a morte. No meio da viagem, ocorreu-me um verso não sei de quem: — “Tão curto o amor e tão longo o esquecimento”. Quem escreveu isso? Não sei, ou por outra: — agora me lembro. É de Neruda, o Neruda da primeira fase. Tão curto o amor e tão longo o esquecimento. É espantoso que, algum dia, Neruda tenha amado.
Dois dias depois, ou no dia seguinte, um amigo comum bateu o telefone para mim: — “Já sabe? Fulano morreu”. Lembrei-me de Neruda e passei de Neruda para a frívola memória dos homens. O meu informante ainda acrescentou: — “Já está na capelinha”. Não me saía da cabeça o futebol de botão, enquanto um pai mor­ria a dois passos. Horas depois, entrava eu na capelinha.
É um erro — era o que ia pensando —, é um erro a simultaneidade de velórios. De vez em quando, o parente, ou amigo, ou a esposa, vem espiar o velório vizinho. Ou se, por escrúpu­lo, pudor, não vem espiar, tem essa vontade. O escritor católi­co estava no andar de cima. Vou subindo (contando os degraus com uma irremediável pusilanimidade cardíaca).
Antes de ver o morto, uma lúgubre curiosidade levou-me ao pequeno bar (e isso me daria, em seguida, um sentimento de culpa pueril e terrível). O escritor não exagerara. Realmen­te, era exato o alarido de xícaras e pires. As pessoas interrom­piam a dor e vinham tomar um cafezinho, ou um refrigerante. Alguém pedia um sanduíche de salaminho. E, de fato, a morte tinha, por fundo, aquele pequeno bar fremente como uma colméia de xícaras e pires.
E, de novo, eu pensava em Neruda. Queria-me parecer que o esquecimento começava antes da morte. Cada um de nós es­quece tanto, tanto. Há os que são esquecidos antes da própria doença. Andam por aí, salubérrimos, e nós os esquecemos como se jamais tivessem existido. E, súbito, começo a pensar em Bob Kennedy.
(Preciso datar esta minha experiência: — tudo aconteceu há dois dias.) Bob Kennedy era um morto tão recente e tão antigo. Não se passou nem uma semana, não haveria tempo sequer para a missa do sétimo dia. Não sei se os outros povos têm, co­mo o nosso, essa vocação para a missa do sétimo dia. E vejam vocês: — as primeiras 24 ou, digamos, as primeiras 48 horas criaram entre nós e o crime, entre nós e o morto, toda uma dis­tância infinita, milenar. Mais uns quinze dias, e os dois assassi­natos parecerão simultâneos: — o de Bob Kennedy e o de Pi­nheiro Machado. Com um mês, já não saberemos quem levou a punhalada e quem levou o tiro, se o gaúcho, se o americano.
Mas onde percebi o esquecimento de Bob Kennedy foi, domingo, no Estádio Mario Filho. Iam jogar Vasco x Botafogo. Embora fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto, qua­se 200 mil pessoas estavam ali. (E, novamente, me ocorre o verso parnasiano parecido com o do astronauta: — “A multidão é azul”. Realmente, nenhum céu da Itália será mais azul do que a multidão de domingo.) Éramos 200 mil pessoas e ninguém, ali, exatamente ninguém, pensava em Bob Kennedy. Era quase o morto da véspera. A notícia do atentado feriu de espanto o Brasil inteiro. E a multidão de meio bilhão e quebrados esque­cia o jovem até seu último vestígio.
E o pior foi quando o locutor do Estádio Mario Filho anun­ciou o minuto de silêncio pela morte de Bob Kennedy. Ora, no ex-Maracanã vaia-se até minuto de silêncio. Pelo amor de Deus, não façam outro minuto de silêncio num grande clássico. Olhei em torno. Nem todos se levantaram. Houve um muxoxo unâni­me, ou quase (e um muxoxo de 200 mil pessoas é ensurdecedor). E, súbito, o mártir passou a ser o importuno, o inconveniente, que vinha adiar por todo um minuto interminável o começo do jogo. Nunca houve um minuto de silêncio tão ressoante de assovios, piadas e milhões de ruídos fantásticos e inumanos.
Pior foi lá, nos Estados Unidos, na catedral onde o corpo ficou exposto. Aqui, no Estádio Mario Filho, estavam presentes só 180 mil pessoas. Na catedral, 1 milhão de pessoas desfilaram diante do caixão. Eis o que eu queria notar: — o velório teria de ser um ato de amor, solitário, exclusivo, sagrado ato de amor. Que miserável impostura atribuir às 180 mil daqui e às 900 mil de lá qualquer sentimento de amor. (O velório de 1 milhão de pessoas é gelado como um deserto siberiano.) Foi apavorante a solidão de Bob Kennedy no jogo Vasco x Botafogo.

[12/6/1968]

Nenhum comentário: