quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

EDUCAÇÃO SEXUAL

O meu secretário chama-se “Pão Doce” (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que “Pão Doce” é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia). Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o “Pão Doce” vem, correndo, avisar: — “Tem um cara te pro­curando”. E repetia, de olho rútilo: — “Um cara!”.
Estava excitado como se fosse a polícia. Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O “Pão Doce” indaga: — “Mando entrar?”. Puxo um cigarro: — “Manda”. Com pouco mais, volta o “Pão Doce” acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — “Tenha a bondade”. Sentou-se: — “Com licen­ça”. O “Pão Doce” retira-se. E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pe­sadelo.
Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei co­mo se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal). Eis como se apresentou: — “Eu sou um pai”. Explicou em seguida: — “Vim de São Paulo, es­pecialmente”. (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo.) Pausa. Diga-se de passagem que o “diálogo” foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.
Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, me­lhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo “olhos azuis” e já não sei se ele falou de “olhos azuis”. Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. “Sou católico”, in­forma; e ajuntou: — “Praticante”. Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — “Mas não sou católico pra frente”.
No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famí­lias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — “Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal”. Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras. Disse no tele­fone: — “Pois não, pois não! Irei, com muito prazer”. E, na ho­ra marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — “Por obséquio, onde é a reunião dos pais?”. A outra sorria: — “Por aqui”. Ele a seguiu.
E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — “A educação se­xual, aqui, começa aos quatro anos de idade”. O pai imagina: — “Devo ter ouvido mal”. Fez a pergunta: — “A senhora disse ‘quatro anos’?”. Resposta: — “Quatro anos”. Um outro pai in­daga: — “E as crianças entendem?”.
Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral. Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexi­dade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud. A diretora explica, deleita­da: — “As meninas aprendem vendo figurinhas”.
O coração do pai começou a bater mais forte. Continuava a explicação: — “As meninas vêem as gravuras e aprendem tu­do”. O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais “gravuras obscenas” que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.
E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as “gra­vuras obscenas” que a madre não achava obscenas? Veio o es­clarecimento: — “É preciso acabar com o tabu do sexo!”. Dis­se isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — “Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...”. A diretora parou, um mo­mento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — “Como be­ber um copo de água”. O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — “Muito interessante”.
O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com re­flexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em “prostituição”. A freira deu a resposta fulminante: — “Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer”. Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — “Realmente; realmente”. O pai balbuciou: — “Profissão como outra qualquer? A senhora tem cer­teza?”. A outra é superiormente irônica: — “Não vamos discutir o óbvio”.
E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homici­da. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio. Despediu-se de todos, desculpou-se: — “Preciso ir. Estão-me esperando”. Saiu, desatinado. E, agora, diante de mim, di­zia: — “Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E en­sina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissio­nal do sexo. Deve descontar para o Instituto”.
O outro horror do pobre homem eram as “gravuras obs­cenas”. Dizia-me: — “O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O se­nhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, fau­nos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?”.
Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — “É a Igreja pra frente”. E repeti: — “É a Igreja pra frente”. O outro concordou, numa amargura hedionda. Sentiu-se um ca­tólico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror. Suspira: — “Pelo menos, desabafei”. E partiu, sem deixar o nome. É tão anôni­mo como alguém que jamais tivesse existido.

[14/6/1968]

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