segunda-feira, 9 de março de 2009

A GRATIFICAÇÃO

Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada.) Seu palácio saiu nos “mais belos interiores” de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte. Outro dia, fui visitar outro casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me des­lumbrou foi a bica. Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo: — “Que bica! Que bica!”. E ele, na sua flamejante modéstia: — “Ouro maciço!”.
Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — “Eu sou amante espiritual do Guevara”. Em seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do “Che” em sua alcova. Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Pois bem. E foi justamente a “amante espiritual” de Guevara que telefonou, ontem, para mim.
Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem de saúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — “Cada vez mais reacionário!”. E eu: — “Pelo amor de Deus!”. Mas ela estava com pressa e foi dizendo: — “Vem hoje aqui em casa, ouviu?”. Criou um mistério, um suspense: — “Tenho uma surpresa”. Re­sisti de puro charme. Finalmente, disse que ia. Assim nos des­pedimos.
Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — “E a surpre­sa?”. Brincou com a minha curiosidade: — “Calma, calma”. Aca­bou dizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — “Padre de passeata?”. Fez espanto: — “Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!”. Expliquei-lhe que o padre de pas­seata era um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, o sacerdote comparecera a duas passeatas; e acres­centou: — “Uma cabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hél­der”. Chamou o marido que ia passando, e perguntou: — “Não é mais inteligente do que d. Hélder?”. O marido disse, grave, taxativo: — “Uma cabeça!”. Se era “uma cabeça”, e “mais in­teligente do que d. Hélder”, eu estava disposto a vê-lo e ouvi-lo.
Pouco depois, chegava “a cabeça”. Nada de batina. O sa­cerdote estava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apa­receu, houve um frêmito em todos os decotes. Fui apresenta­do. “Muito prazer”, de parte a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, no meu ouvido: — “Vai falar sobre se­xo”. Insinuei: — “Já estou muito velho para educação sexual”. Mas uma outra a chamava. Afastou-se. E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite.
(O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas. Especializara-se em sexo e Guevara.) Daí a pouco, sou chamado: — a “cabeça” ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, com umas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível da platéia. Alguém me sussurrou: — “Uma cultura!”. E, justamente, a “cultura” começava a falar.
Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal. Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — “Estamos aqui num encontro informal”. Dizia “informal” com particular satisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da bo­ca. Não começou, imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado para outro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, da primeira fila, a anfitriã sugere: — “Conta aquela”.
Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: — “Qual?”. E a outra: — “Aquela!”. Empina o queixo, faz um esforço de memória: — “Aquela?”. Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiu que o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços. Teve que admitir: — “Sinceramente, não me lembro”. E, como ele não se lembrava, não se sabia o quê, ex­plodiu a gargalhada. O padre de passeata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos. Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — “A platéia está no papo”.
Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista, repetia, banhado em delícia: — “Uma cabeça! Uma cabeça!”. Fui, então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango de Gardel que começava assim: — “Por uma cabeça” etc. etc. E o tango devia ser de Gardel e Le Pera. Na platéia, já ba­tiam palmas. Era o primeiro lapso aplaudido. A dona da casa ex­plicava: — “Aquela da prostituta. Aquela!”.
O padre de passeata bateu na testa: — “Agora me lembro”. E a anfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — “Ótima, ótima!”. Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, o sacerdote não tinha pressa. Parou numa extremi­dade do palco. De perfil para a platéia, olhando para o alto, dis­se: — “Realmente, realmente”. Começou: — “Prostituta”. Sus­pirou. E, já no centro do palco, explicava: — “A prostituta não me espanta”. Perguntou, de supetão, à platéia: — “Os senho­res se espantam com um bombeiro hidráulico, um ourives ou protético?”. Silêncio. Recomeçou: — “Ser prostituta também é um ofício”. Repetiu, com certa ferocidade: — “Ofício, ofí­cio, ofício”. Pausa. Novo suspiro: — “Profissão”. Profissão, co­mo outra qualquer. “Ganha-pão.”
Ria agora: — “Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato de rua”. Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava os presentes. Disse: — “Nem sei se deva contar”. Vozes pro­testaram: — “Conta, conta!”. E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agora estava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — “O caso é o seguinte: — fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher da vida. Me abordou”.
Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa. Disse: — “Me fez uma proposta”. E, súbito, em tom castamente infor­mativo, ele falou que, hoje, há trottoir por toda a cidade. “Até na porta da igreja.” No passado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, em ruas rigorosamente familiares, estrita­mente residenciais, nós vemos uma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina de família. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela está exercendo uma profissão. “Não direi profissão infame, porque não há profissões infames. Há profissões.”
Vozes perguntam: — “E o que é que o senhor fez?”. Repe­tiu, criando um suspense delicioso: — “O que é que eu fiz?”. Continuou: — “Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão”. Perplexidade divertida. A “amante espiritual de Guevara” pediu: — “Diz por que é que o senhor falou em ale­mão”. Sorria, banhado em sucesso: — “Pelo seguinte: — porque eu queria passar por estrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos, eu não estava entendendo nada”. A dona da casa, em pé, protestou: — “O senhor não está contando di­reito. Conta, conta. Por que é que o senhor não podia enten­der a proposta?”. E ele, iluminado: — “Porque se eu entendes­se a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu sou pederasta”. Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam para o pal­co. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usara mais pausas do que palavras, suspirava: — “Cansei”. Vozes: — “Genial! Genial!”.
Meia hora depois, a “amante espiritual de Guevara” cha­mou-o numa outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, o cachê.
[10/8/1968]

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