terça-feira, 10 de março de 2009

OS DEFUNTOS LITERÁRIOS

Todo mundo já ganhou o prêmio Nobel, menos o brasileiro. Não me venham falar em subdesenvolvimento. O Chile e a Ni­carágua são mais subdesenvolvidos do que o Brasil. E ambos têm o seu prêmio Nobel. Há quem diga: — “A Nicarágua não existe”. Sei lá. Mas, exista ou não, eis a verdade: — existe para a Academia Sueca. O Brasil, não. E nem importa a nossa tremen­da extensão territorial. Este país é uma espécie de elefante geo­gráfico. Mas a Academia Sueca olha para cá e não vê ninguém.
Portanto, existimos menos do que a Nicarágua. Mas é uma injustiça. Temos uma massa de intelectuais. Numericamente, não estamos atrás de ninguém, nem da União Soviética. Na Rússia há, registrados, seis mil e tantos escritores (e o sujeito que não foi registrado não é escritor. Mesmo que tenha escrito A divina comédia, não é escritor).
Pode parecer que, numericamente, a União Soviética está na frente do Estados Unidos. Dos Estados Unidos, talvez. Do Brasil, não. Vocês se lembram da última passeata. Antes do des­file, fui ver a concentração. Levei comigo o Raul Brandão, pin­tor de grã-finas e igrejas. E espiamos o espaço reservado aos in­telectuais. Parecia uma massa de Fla-Flu. Jamais nos ocorrera que a inteligência brasileira fosse tão abundante. No seu horror, o Raul Brandão perguntava: — “Tudo isso é intelectual?”.
Fomos olhar outra vez a tabuleta. Lá estava escrito, acima de qualquer dúvida ou sofisma: — “Intelectuais”. Portanto, os intelectuais eram intelectuais. E, então, passo a passo, tratamos de identificar os nossos poetas, os nossos romancistas, os nos­sos ensaístas, os nossos dramaturgos, os nossos sociólogos, os nossos professores. Eis a lamentável e quase grotesca verdade: — depois de buscas ingentes, não identificamos ninguém. Ninguém? Isso mesmo: — ninguém. No meio de 20 mil sujeitos, não havia uma cara conhecida.
De repente, o Raul Brandão crispa a mão no meu braço; sussurra: — “Acho que vi a Nara Leão!”. O “acho” insinuava uma dúvida. A Nara Leão pode não ser a Nara Leão. Talvez pa­recida e não a própria. Pergunto: — “Cadê?”. O Raul Brandão procura, procura, e tem de admitir: — “Sumiu”. E, então, co­meçamos a reexaminar as caras.
(Quem devia estar ali era a Academia Sueca, apalpando, farejando, a literatura brasileira.) Se pose é um dado válido, to­do mundo ali era Proust, era Joyce, era Balzac, era Cervantes. Uns ficavam de perfil, outros de frente, outros de três quartos, outros punham as mãos nas cadeiras. Atrás de mim, o Raul Bran­dão gemia: — “Como são inteligentes!”. Eram, sim, inteligen­tíssimos.
Os idiotas da objetividade poderão insinuar que são autores sem um livro, poetas sem uma quadrinha de são João, ensaístas que não lêem, não escrevem, nem pensam. Não importa. A abun­dância numérica os salva. Enquanto a União Soviética só con­segue juntar escassamente 6 mil escritores, o Brasil pode retru­car com 20 mil. Dirá alguém que toda a literatura soviética atual não merece amarrar os sapatos de Dostoievski. Como não sou crítico literário, deixo de opinar. Mas continua de pé a pergun­ta humilhante: — por que, com tantos autores, o Brasil jamais foi contemplado com um prêmio Nobel?
Não obstante o subdesenvolvimento, que explica tudo, te­mos campeões mundiais no futebol, no basquete, no hipismo, no tênis, na pesca submarina, no iatismo. Nas exposições de gado, temos vacas premiadas. As nossas caixas de fósforos ga­nham medalhas. Se houver um campeonato de cuspe à distân­cia, um moleque nosso há de vencê-lo. Ainda na semana passa­da, o nosso Botafogo, com três enxertos, goleou de 4 x 1 a grande seleção argentina. Vitória com olé. Fizemos um gol, o último, de oitenta passes. Mas repito: — por que até as vacas, até as caixas de fósforos brasileiras são premiadas, e os escrito­res, não?
Foi esta, mais ou menos, a pergunta que fiz a um amigo, justamente um dos idiotas da objetividade. Ele vira-se para mim e pergunta: — “Ou não Percebeste que a literatura brasileira não escreve mais?”. Tomo um susto: — “É literatura e não escre­ve?”. Exatamente: — a literatura brasileira é literatura, mas não escreve uma linha, uma frase, um verso, nada. Há, por todo o Brasil, um ensurdecedor silêncio literário.
Esbugalhado, perguntei: — “E que faz a literatura brasilei­ra?”. Retruca o idiota da objetividade: — “Faz passeatas”. To­davia, não aceitei a morte literária do Brasil. Corri à Biblioteca Nacional. E tive a crudelíssima surpresa: — o nosso último su­plemento literário fechou as portas na abertura dos portos. Volto ao idiota da objetividade; disse-lhe: — “Mas tínhamos um críti­co, rapaz de talento, o Álvaro Lins”. E o outro: — “É anterior a José Veríssimo, Araripe Júnior, Sílvio Romero. Álvaro Lins é a nossa maior antigüidade crítica”.
Posto diante da evidência objetiva e estarrecedora, acabei por me convencer. Quando se travou a primeira batalha do Mar­ne, e os táxis de Paris salvaram a França, que fazia, aqui, o José Veríssimo? Fazia crítica literária, indiferente ao mundo que mor­ria, indiferente ao mundo que nascia. E, sem querer, falei num nobilíssimo gênero literário: — a crítica. No passado, um jornal podia abrir mão de tudo, menos do seu crítico. E quando aqui desembarcou d. João vi, enxotado por Napoleão, já encontrou o Álvaro Lins, no cais, à sua espera. El Rey perguntou, num gesto largo: — “Como vai o meu caro rodapé?”. E o rodapé, baixan­do a vista, escarlate de modéstia: — “Caprichando, majestade, caprichando!”. Foi divino.
Mas tudo isso acontecia antes das passeatas. O último óbi­to literário, que se conhece, foi o suplemento concretista do Jornal do Brasil. Aí morreu a nossa literatura. O leitor, que é de uma inocência obtusa, há de perguntar: — e por quê? Res­posta: — Morreu porque se politizou. Veio o Vietnã. E, por úl­timo, explodiram as passeatas. Assim como há o padre de pas­seata, há o escritor de passeata. São os tais estilistas sem uma frase, os tais poetas sem uma metáfora etc. etc. E, súbito, os nos­sos cafés, bares e boates se povoaram de defuntos literários. Ou­tro dia, no Antonio’s, vi um tão defunto que usava algodão nas narinas. Orai por ele.
Temos, ainda, a grã-fina de passeata. No seu guarda-vestidos há 1500 decotes. Já quando houve, na França, a jovem revolução, o marido da grã-fina sentiu-se ameaçado como se fos­se o próprio De Gaulle. E, de repente, começa aqui a imitação francesa. Até que um dia a grã-fina diz que vai à passeata. O ma­rido perdeu a esportiva: — “Está maluca? Bebeu?”. A mulher, que só fazia massagem com um copo de cerveja na mesinha, reagiu como “La Pasionaria”: — “Eu não sou reaça como vo­cê!”. O marido tratou de provar-lhe, didaticamente, que a pas­seata era contra os 1500 decotes. Ela não se convencia, nem a tiro; e, por fim, o marido propôs: — “Vou lá espiar e depois te digo”. Assim se fez. O homem viu e, inclusive, participou da marcha até a Candelária. Não descobriu um preto, um ope­rário, um salário-mínimo, mas viu, em compensação, todas as grã-finas da cidade.
Voltou convencido de que eram as classes dominantes que desfilavam, sob a chuva de listas telefônicas. Disse à mulher: — “Pode ir à próxima”. Os 1500 decotes estavam salvos.
[13/8/1968]

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