segunda-feira, 16 de março de 2009

O CAFAJESTE NÃO VIAJA

Qualquer um pode viajar, menos o brasileiro. O inglês po­de ir para a China e jamais será mandarim. Do mesmo modo, a inglesa. Uma inglesa, em Tóquio, não será jamais uma mada­me Butterfly. E assim o francês, ou o alemão, ou a alemã. Ao passo que o brasileiro, a partir do Meyer, começa a usar os so­taques do seu itinerário turístico.
E, por vezes, não é preciso nem a viagem. Basta um tele­grama. Recentemente, os estudantes franceses fizeram uma sin­gular revolução francesa. Tudo consistia em arrancar paralele­pípedos e virar carros. Foi talvez a primeira revolução feita sem uma única idéia. Os jovens arrancavam os paralelepípedos, vi­ravam os carros e nada mais. Exatamente: — nada mais.
E houve um momento em que o poder ficou vago. A his­tória pensou: — “Vem por aí um novo De Gaulle”. E o velho De Gaulle não moveu uma palha, não tirou uma cadeira do lu­gar. O poder estava lá, nas alegres barbas da “jovem revolução” e repito: — o poder oferecia-se como um fruto maduro, próxi­mo e indefeso. Bastava o simples gesto de colhê-lo. E ninguém fez esse gesto. Nem estudantes, nem socialistas, nem comunis­tas, nem intelectuais, nem operários. Ninguém.
Um conhecido meu abria os braços e perguntava: — “Mas como? Uma potência espiritual, como a França, não tinha ninguém?”. Era a humilhante verdade: — ninguém. Ou por outra: — tinha o velho De Gaulle e só De Gaulle. E, portanto, foi o Herói que, com o seu tédio sardônico, ficou com o poder não possuído por ninguém.
Mas não era isso que eu queria dizer. O que eu queria di­zer é que os nossos jovens se embebiam das notícias de Paris. Vejam vocês: — é possível, pelo telégrafo, mudar as nossas idéias, sentimentos, valores. E, então, começou aqui uma efer­vescência feroz. Também carros virados. Ninguém arrancou os paralelepípedos, porque somos uma cidade asfaltada. Fez-se uma “jovem revolução” liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo era apócrifo. Aqui, ninguém teve um gesto próprio, uma fúria autêntica, um palavrão original e profundo.
Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de sua paisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagirá ele, em Pa­ris, Londres, Berlim ou Nova York? Está lá submetido a pres­sões insuportáveis. Bem me lembro do meu amigo Otto Lara Resende. Passou dois anos na Europa. E, quando voltou, era ou­tro Otto. Fomos passear em Ipanema. Diante do poente do Le­blon, inaugurou ele uma de suas frases máximas: — “Paisagem é verba!”. Insinuei que o nosso poente não faz vergonha. Mas ele insistiu: — “Poente é verba!”.
E, mais uma vez, verifiquei que raríssimos brasileiros po­dem viajar além de Bangu. O outro caso. Há três ou quatro me­ses, o meu amigo Carlos Heitor Cony bateu-me o telefone: — “Nelson, vim me despedir”. Como seu tom era meio lúgubre, ainda brinquei: — “Vais te matar?”. Respondeu: — “Ainda não. Vou viajar”. Protestei: — “Não faça isso”. Conversamos uma meia hora. Insistia eu: — “O brasileiro que viaja volta mais bur­ro”. Jurei: — “Não conheço um brasileiro que não voltasse mais burro”. Ele resistiu até o fim: — “Você exagera. Não é nada dis­so”. Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei a dizer-lhe que ele precisava ser o cafajeste total. Não exagerava. De fato, um maravilhoso cafajeste está inserido nele, está enterrado ne­le como um sapo de macumba. E o cafajeste não viaja.
O pior é que a viagem ia ser imensa. Passaria por Berlim, Paris, Moscou, Londres e, até, Pólo Norte. Imaginei que volta­ria um ex-Cony, um anti-Cony. E me preocupava também o des­tino do seu riso. O meu amigo tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como os antigos sátiros vadios. Imaginei que a viagem pu­desse emudecer-lhe o riso.
E o Cony partiu. Três meses de ausência densa, cruel, desesperadora como a morte. Outro dia, paro num sinal fechado. Estou em cima do meio-fio, esperando, quando um automóvel encosta e alguém anuncia: — “O Cony chegou! O Cony che­gou!”. Pouco depois, entro na redação e ligo para o amigo. Ia perguntar-lhe: — “Como é? Ficaste mais burro?”. Mas não es­tava. Deixei o meu nome. E esperei em vão que me telefonasse. Nada. No dia seguinte, ligo outra vez. Também não estava. Li­guei outras vezes. Nunca estava. Ele, aqui, a dois passos, pare­cia longínquo como se ainda existisse entre nós dois a distância que vai de Ipanema ao Pólo, do Castelinho a Cingapura.
Sou um pessimista e logo imaginei: — “É outro Hélio Pellegrino”. Já falei do abismo ideológico que se cavou entre mim e o Hélio. Tenho escrito sobre passeatas, d. Hélder e dr. Alceu. Em confissões sucessivas, acusei as esquerdas de uma alienação monstruosa etc. etc. O Hélio não gostou. Dizia-me com a sua bela voz de Paul Robeson branco: — “Não é o momento! Não é o momento!”. Enquanto o Hélio falava assim, em arroubos, eu pensava nos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e por outros. Ferido como estou, não ouso trapacear comi­go mesmo e com os demais. Digo o que sinto e o que penso. Apenas.
Todavia, na véspera dos meus anos, o Hélio ligou para mim. Ninguém mais doce: — “Pode dizer nos seus artigos que você é dos meus amigos fundamentais”. Dias antes, de público, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. E o Hélio expli­cava: — “Mas não posso jantar contigo amanhã, porque vou sair do Rio”. Era o décimo encontro que ele adiava. Jurou, porém: — “Janto contigo na semana que vem”. Isso foi no dia seguin­te. Não me concedeu um mísero telefonema. Se eu fosse espe­rar por ele, e seu prodigioso jantar, estaria morto de fome.
E já me parecia que, como o bom Hélio Pellegrino, o Cony fugisse de mim. Não queria, decerto, conspurcar-se com o meu “oba” ou com o meu aperto de mão. Pois bem. Até que há o temido encontro. A coisa ocorreu no Museu da Imagem e do Som. Ele ia depor sobre a figura e a obra de Mario Filho. Assim que o vi, e ele me viu, houve o suspense de um ou dois segun­dos. Em seguida, veio o abraço desesperado, o riso violento e recíproco e a certeza de que éramos amigos para sempre. Disse-me Cony: — “Recebi o teu recado. Mas não telefonei, de pro­pósito. Não queria ver ninguém. Por enquanto, não”. Foi aí que eu reparei: — era um outro Cony que estava na minha frente, talvez mais atormentado e talvez mais puro. Sim, um Cony tra­balhado pela solidão, um Cony de uma outra densidade. Per­guntei, aflito: — “E a viagem? E a viagem?”. Varara o mundo e fora até ao Pólo Norte. E eu: — “Que tal? Que tal?”. Respon­deu sério, cruel: — “Tudo a mesma coisa! Tudo a mesma coi­sa!”. Vira a Vênus de Milo: — “Tem erisipela”. E da Gioconda: — “Tem mau hálito”. “O Louvre, uma impostura.” Estava tris­te e exausto de tudo o que vira. Passara na Rússia, na França, na Inglaterra, na Tchecoslováquia. E, por fim, fez um resumo desesperado de tudo: — “O homem fracassou”.
[18/9/1968]

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