terça-feira, 17 de março de 2009

OS DOIS NAMORADOS

Há coisas que um grã-fino só confessa num terreno baldio, à luz de archotes, e na presença apenas de uma cabra vadia. Lembro-me de uma festa na casa não sei de quem (só sei que era grã-fino). Na altura das três da manhã, o dono da casa põe mais gelo no uísque e diz: — “Na minha casa só as criadas vêem televisão”. Os circunstantes concordaram em que a televisão é uma ignomínia.
E, no entanto, vejam vocês: — o anfitrião estava bêbedo da cabeça aos sapatos. Mas o grã-fino preserva, ainda no pileque, uma série de poses fundamentais. Uma delas é o falso des­prezo pela tv e seus programas. Disse eu que o grã-fino só diz certas coisas num terreno baldio etc. etc. Já retifico. Nem no terreno baldio. Ele só dirá que gosta de televisão ao médium, depois de morto.
É, repito, uma pose. Na verdade, o meu anfitrião não per­dia uma da Dercy, uma do Chacrinha, uma do Raul Longras. Quanto a mim, sou franco: — não preciso do terreno baldio, nem do médium. O fato de ser apenas um pequeno-burguês, sem nenhum laivo de grã-finismo, dá-me descaro bastante para confessar, aos quatro ventos: — vejo televisão e, pior, gosto de televisão.
Dirá um intelectual ou um grã-fino: — “Mas, e o nível? O nível?”. Ao que eu responderia, com a mais límpida e casta objetividade, que o tal nível, que se atribui às nossas tvs, é muito relativo. Acusamos o nível das emissoras e ninguém fala do nos­so. Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem.
Muitos abominam o Chacrinha e adoram d. Hélder. E há coisas que d. Hélder faz e que o Chacrinha jamais ousou. Por exemplo: — um dia, abro O Jornal e vejo na seção “Eles disse­ram” algumas declarações do grande arcebispo. Dizia ele, em resumo, que era perfeitamente legítima a “missa ao som de cuí­ca, tamborim, reco-reco” etc. etc. Um católico e, ainda mais, um sacerdote propunha a “missa de gafieira”.
Portanto, é lícito dizer-se que certas posições de d. Hélder estão abaixo do nível do Chacrinha. Mas falo, falo, e esqueci o meu assunto. Vou falar, hoje, do padre Ávila. (Se não me en­gano, é da puc.) Mas, vejam vocês: — o nosso Ávila, além de ser padre, é sociólogo. Há um ano, um ano e pouco, estava eu assistindo a um programa de tv. E eis que aparece quem? Jus­tamente o padre-sociólogo.
É um sociólogo que está radiante de o ser. E ele não diz um “oba” sem lhe pingar sociologia. No programa referido dis­correu, exatamente, sobre o jovem. Que dizia o padre e que di­zia o sociólogo? Não me lembro textualmente de suas palavras. Mas o padre Ávila começou dizendo, se não me engano, que “os tempos estão duros”. Até aí concordei. De fato, acontecem coisas, em nossa época, que desafiam toda a nossa experiência e todo o nosso raciocínio. E, a propósito de o jovem, ele refe­riu um episódio muito curioso. Certo rapaz cometeu, contra um amigo, um ato de extrema vileza. Pouco depois, o padre Ávila conversou com o culpado. Perguntou-lhe: — “Você não acha que foi uma deslealdade com o seu amigo?”. O rapaz, mascan­do goma, saiu-se com esta: — “E é preciso ser leal?”.
O padre não se espantou. Um sociólogo não se espanta. Se lhe servirem, no jantar, um ensopadinho de abóbora com ratazana, ele não concederá ao fato um único e reles ponto de exclamação. Pois bem. Até aquele momento não entendera o gesto de o jovem. Transmitiu ao telespectador a sua perplexi­dade. E nem o entrevistado, nem o público perceberam o ób­vio ululante. Quem se escondia, ou por outra, quem não se es­condia por trás do ato vil era um velho conhecido nosso — o pulha.
Mas, pergunto: — por que o nosso Ávila não reconheceu a vileza como tal? É sacerdote e, ao mesmo tempo, um sábio e, ao mesmo tempo, um professor e, ao mesmo tempo, um so­ciólogo. E não sabe que a infâmia é infâmia, que a indignidade é indignidade, que o cinismo é cinismo. Diante da evidência es­petacular, faz-se de cego. E o padre Ávila não será o único. Há milhares, há milhões de ávilas. Por toda a parte, e a começar na família, só esbarramos e só tropeçamos em ávilas de ambos os sexos. Os pais são ávilas, as mães são ávilas, e as tias, e as cunhadas. Todos são ávilas sem batina, sem sociologia etc. etc. Também nas escolas, nas universidades, nos escritórios, nas re­dações os ávilas são a maioria, quase a unanimidade.
O dr. Alceu fala, sem rebuços, na razão da idade. É um ávila. E como existem alceus e ávilas em todos os idiomas, nin­guém julga o jovem, Não ocorre a ninguém que o jovem pode ser um santo, um herói, um justo e, também, um canalha. É um crime dar-lhe uma razão absoluta, isto é, dar razão a quem não a tem.
E assim se criou uma figura sinistra, difusa, irresponsável, que ninguém ousaria julgar. Realmente, o jovem está diante de nós sagrado, intangível. Um coroinha julga o papa. O padre de passeata condena 2 mil anos de cristianismo. Todos os valores são questionados, refutados. Só ao jovem tudo é permitido. Há coisas, porém, que justificam a nossa desesperada meditação. Quero falar de um fato concreto.
Para evitar que se identifiquem as vítimas, não direi nem quando, nem onde ocorreu. Foi numa universidade que o lei­tor não saberá se daqui, de São Paulo, Brasília ou Belo Horizon­te. Imaginem um casal de namorados de menos de vinte anos, estudantes e católicos. Um dia, o rapaz e a menina são cercados por um bando de colegas marxistas (digamos, marxistas de ga­linheiro). O que estes exigem dos namorados é um atestado de ideologia.
Para não tomar o tempo do leitor, direi que o primeiro a ser agredido, por uns oito ou dez, foi o rapaz. A namorada, na sua desesperada fragilidade, quis socorrê-lo. Foi logo agarrada, imobilizada. Apanhou na boca. E quase mataram o namorado, a socos, pontapés, chutes. Já sem sentidos, levou o último pé na cara. Mas não foi tudo. Lá estava o rapaz, quase morto. E, então, os outros arrastaram a menina. Também a socos, a patadas. Ah, eu sei que tudo se publica. Mas o que fizeram com a adolescente não pode ser impresso em idioma nenhum. Muito tempo depois, alguém descobriu os namorados, ainda desmaiados. Uma ambulância, ou táxi, sei lá, os levou. O crime não me­receu nenhuma imprensa e explico: — os bandidos tinham a razão da idade. O jovem estupro, por ser jovem, está acima do bem e do mal. Mas há de chegar um dia em que a juventude será julgada.
[19/9/1968]

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