sábado, 28 de março de 2009

O HÉLIO E O ANTI-HÉLIO

A história dos meus jantares e almoços com o Hélio Pelle­grino não é, como pode parecer aos idiotas da objetividade, um problema de menu. (Eu devia estar aqui falando do desfecho do Festival.) Mas como ia dizendo: — acima das preferências de cardápio e da voracidade dos nossos apetites, há toda uma complexa, dilacerada, conflituosa relação humana.
Não sei se me entendem e tentarei explicar. Enganam-se os que vêem um só Hélio Pellegrino. São dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. A alma do meu amigo tem sido palco de uma batalha feroz entre um e outro, entre ele e o seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo. Dirá alguém que estou apresentando a figura de um centauro. Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a ou­tra metade o anti-Hélio.
Mas como o leitor é fanático da nitidez, tentarei ser mais claro. O Hélio é a pessoa e o “outro” Hélio a antipessoa. Se, apesar da minha prolixidade, ainda não me entenderam, pa­ciência. O que chamo Hélio do puro, do legítimo, do escocês, é o que me telefonou na véspera dos meus anos. Dias antes, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. Esse repto foi, e aqui o confesso, uma impiedade. Sim, eu sabia que estava provocando uma luta corporal entre o Hélio e o anti-Hélio, ou seja: — entre o poeta e o político.
Para minha sádica satisfação, as coisas se passaram como eu previa. Os dois Hélios marcaram um encontro no terreno baldio, à meia-noite, a hora que apavora. Tratava-se de decidir se o poeta e psicanalista devia comer, ou não, um bife comigo. Como era uma rixa crudelíssima, o contra-regra do terreno bal­dio providenciou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto.
Segundo a cabra vadia, única testemunha do fato, o bate-boca teve um fundo de relâmpagos de curto-circuito e de tro­vões de orquestra. E, como se trata de um centauro humano, as duas metades chegaram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite. Começaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e escouceava, era o anti-Hélio. O Hélio, não.
O Hélio legítimo, escocês e não falsificado, é o que há de mais doce, terno, compassivo, luminoso. Quantas vezes já o vi crispado de misericórdia como um santo. E não resisto à tenta­ção de contar um dos seus gestos exemplares. Eis o caso: na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende estava, na cozinha do Hélio, bebendo um copo de leite. Bebe o leite e, súbito, dá-lhe uma nostalgia total do Brasil. Começa, então, a chorar. Enquanto o anti-Hélio achava aquilo uma papagaiada, o verdadeiro Hélio chora também. Os idiotas da objetividade dirão que um chorava porque partia, e o outro chorava porque ficava.
Não, não. O Hélio chorava de graça, chorava por nada. Min­to. Ninguém chora por nada e repito: — chora-se por tudo. De­víamos chorar, em massa, em unanimidade, todos por todos. Mas o que importa notar é que o Hélio chora. Dito isto, volte­mos ao terreno baldio. O anti-Hélio esbravejava: — “Você não pode jantar com a besta do Nelson! É um reaça! Acredita nos Dez Mandamentos! É da Igreja velha! A favor da Virgem Maria!”. E o verdadeiro Hélio: — “Mas é meu amigo! Gosto dele! Meu chapa!”. Dando rútilos coices, dizia o outro: — “É a favor dos 2 mil anos da Velha Igreja e contra os quinze minutos da No­va!”. Dada a exaltação de ânimos, o contra-regra providenciou mais uma meia dúzia de relâmpagos de curto-circuito e outra de trovões de orquestra.
A guerra verbal durou até às quatro da manhã. O anti-Hélio batia na mesma tecla: — “Não podes jantar com a reação! Não podes jantar com a Direita!”. Às cinco horas da manhã, o legíti­mo Hélio capitulou: — “Está bem. Não janto. Mas preciso tele­fonar. Dou uma desculpa. Afinal, gosto do Nelson, que diabo!”. E assim se fez.
O telefonema que me deu o Hélio, na véspera dos meus anos, foi uma página de Os Maias. Disse-me que nada mudara; era meu amigo como nunca; e foi mais taxativo: — “Autorizo você a dizer, no seu artigo, que você continua sendo um dos meus amigos fundamentais!”. Mas logo acrescentou: — “Só não posso jantar”. Pigarro e ajunta: — “Tenho que ir a Teresópo­lis!”. Eu imaginei o esforço físico que lhe custara fabricar tal via­gem contra um pobre e indefeso aniversariante. Transido de re­morso, disse ainda: — “Na semana que vem jantamos juntos. Sem falta. Faço questão”. E eu: — “Deus te abençoe, Hélio, Deus te abençoe”.
Dia dos meus anos, todo mundo jantou comigo, menos o Hélio. Sua ausência estava sentada na minha alma. Mas, e o jan­tar posterior, combinado e datado por ele mesmo, com a ênfa­se dos compromissos fatais? Sim, o jantar mais esperado do que o Messias? Interditado pelo anti-Hélio, o meu amigo não me te­lefonou nem para perguntar: — “Morreste?”. Mas dizia eu que o nosso jantar não era uma questão de menu. Em verdade, seu telefonema foi um momento da consciência humana: enquan­to meu obscurantismo não me proíbe de tê-lo por amigo, seu socialismo o impede de jantar comigo. E eu sou, segundo ele próprio o declara com a sua bela voz de barítono, um dos seus “amigos fundamentais”. Durante anos, os casais Hélio Pellegri­no e Otto Lara Resende não faltaram na minha mesa de aniver­sariante. Lembro-me de que, na véspera da morte de Getúlio (eu faço anos a 23 de agosto), abri a minha casa, de par em par, para recebê-los.
Tudo por quê? Porque o anti-Hélio, o Hélio falsificado, não admite que eu insinue as minhas objeções ao d. Hélder e ao dr. Alceu. Tenho uma vizinha gorda que, nos grandes impasses, costuma dizer: — “Deixa pra lá, deixa pra lá”. E eu ia esquecer tu­do, quando, domingo, li o artigo do meu amigo e irmão sobre Lúcio Cardoso. Ora, fui, se assim posso dizer, amigo de infân­cia do grande romancista. E pensei, antes de começar a leitura: — “Ainda bem que o Hélio escreve sobre o Lúcio”. Ora, um artigo sobre Lúcio Cardoso teria de ser sobre Lúcio Cardoso. O diabo é que o testemunho sobre o ficcionista foi escrito pe­los dois Hélios e, portanto, padece de contradições e equívo­cos horrendos.
Começa assim: — “Lúcio Cardoso morreu no dia 23 de setembro e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado”. As primei­ras linhas são do poeta. Em seguida, vem o político, o anti-Hélio: — “Nesse dia, intelectuais, artistas, professores, sacerdotes, mães de família participavam de um ato público contra a realização da viii Conferência de Exércitos Americanos”. Só não entendi por que “mães de família” e não também “pais de família”. De resto, uma mãe de família, quando em ação política, não está ali em função de sua maternidade, mas por motivos outros, po­líticos, ideológicos etc. etc. “La Pasionaria” tinha uns oito fi­lhos, mas seus partos nada tiveram a ver com o seu fervor so­cialista. Bem. Eis o que eu queria perguntar: — por que falar em passeata, por que, se Lúcio Cardoso era a antipasseata, era a negação da passeata? E, de repente, comecei a rilhar os den­tes, no pavor de que me saísse um súbito e aviltado Lúcio Car­doso de passeata. Tempos atrás, escrevi que a única solidão da literatura brasileira era Guimarães Rosa. Não falei de outras e totais solidões: — de Lúcio Cardoso, Octavio de Faria etc. etc.
Em dado momento, diz o artigo: “[...] capitalismo que amesquinha, degrada e coisifica o ser humano” e, portanto, “o amor humano”. O articulista diz isso fremente, com o seu tão conhe­cido gosto pelo patético. Realmente, o capitalismo não é flor que se cheire e muito menos o socialismo que as passeatas pro­põem. Amigos, às vezes um pequenino, um ínfimo, um individualíssimo episódio abre uma janela para o infinito. Vejam o nosso jantar. O capitalismo nunca me impediria de jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do amor que não o deixa comer um bife comigo, um doce e franciscano bife.
[8/10/1968]

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