sexta-feira, 27 de março de 2009

O FALSO DEFUNTO

/Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico, ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses, houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o Varanda pergunta: — “Tens visto o Burlamaqui?”. Respondo: — “Morreu”.
O Varanda recua dois passos e avança outros dois. “Pálido de espanto”, como no soneto, balbucia: — “Quem morreu?”. Confirmei: — “O Burlamaqui”. Pulou como o espectro da ro­sa. Agarrou-me: — “Não é possível! Não pode ser!”. Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei: — “Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!”. Desatinado, o outro dizia: — “Só se morreu hoje, agora, neste momento!”. Desta feita, o assom­brado fui eu. Disse-lhe: — “Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três”.
Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com Ave­nida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em “três anos”, o Va­randa perdeu de vez a paciência: — “Estás fazendo molecagem comigo!”. Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível: — “Juro”. Varanda substituiu o espanto pelo furor: — “Deixa de palhaça­da!”. E eu, também exaltado, voltei à carga: — “Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na mis­sa! Está-me chamando de mentiroso?”.
Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e fi­cou olhando. O Varanda estava quase chorando: — “Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!”. Era demais. Estou repetindo: — “Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?”. O Varanda estendia, as duas mãos crispadas: — “Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!”. E en­tão, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a mis­sa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho tal­vez da memória.
Finalmente, capitulei: — “Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces”. Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.
Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, en­tendi tudo. Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um “falso defunto”. Não estou exagerando. “Falso defunto” é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que nin­guém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fanta­sia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o “falso de­funto”. Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.
Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo: — “Aqui fala a alma do Burlama­qui”. E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também: — “Ah, como vai essa figura?”. O outro não parava: — “Então, você me matou? Parei contigo!”. Sim­plesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe: — “Que fim levaste?”. E ele: — “Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado”. Quando lhe perguntei “Que tal Brasília?”, ele explodiu: — “Brasília é o ouro! O ouro!”. Indaguei se ele esta­va bem lá. Deu uma resposta triunfal: — “Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!”.
Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esque­cia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara to­dos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho. O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repi­to: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo: — “Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã”. Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tu­do o que dizia, uma prosperidade insolentíssima.
Quando me viu, fez a pergunta afrontosa: — “Precisas de dinheiro? Estamos aí”. E repetia, batendo no bolso: — “Dinheiro há, dinheiro há!”. Tal generosidade era uma maneira de se com­pensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar va­zava luz): — “O ouro está lá! Está lá!”. Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Con­tou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi: — “Mas é um milagre!”. Riu, com salubérrimo descaro: — “A autora do milagre é Brasília”.
Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capi­tal. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que con­tava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomo­dações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próxi­mo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.
Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nun­ca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais: — “Não há nada”. E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do mdb. E o si­lêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam ma­ravilhosamente impunes.
E o Burlamaqui me diz: — “Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, ve­nho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece”. Ma­ravilhado, repito: — “Mas é um milagre!”. O outro ri, sórdido: — “Mais ou menos”. Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse: — “Larga tudo, vai pra lá. Toda as cidades pecam, menos Brasília”. Respira fundo e completa: — “Em Brasília, so­mos todos inocentes e somos todos cúmplices”.
O automóvel estava no estacionamento. Vi o “falso defun­to” embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que fa­lei. Não, não. Não falei. Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.
[5/10/1968]

Nenhum comentário: