quarta-feira, 11 de março de 2009

O ÓPIO DAS ELITES

Em todas as ruas, há um ódio. Ou é do ex-namorado pela ex-namorada, ou de uma vizinha por outra vizinha, ou de uma família por outra família. Na minha infância, vi um ódio de me­ninos. Um teria seus nove, outro, oito anos. Um deles, mais vin­gativo, encheu de iodo uma seringa de borracha; e deu um es­guicho no olho do outro. De repente, a rua encheu-se de gritos.
Ainda bem que foi um olho só, e não os dois. Dias depois, apareceu na calçada. Logo outros meninos e outras meninas se juntaram. Fiquei espiando o ceguinho. Ainda agora, estou ven­do o olho branco, ou melhor: — era branco, mas com uma man­cha de azul leve, diáfano. E, não sei por que, eu achava mais bonito o olho cego e tinha inveja do olho cego.
Assim como as ruas, também os povos precisam ter seu ódio. Não importa qual seja, nem contra quem. Hoje, estou con­vencido de que os povos sem ódio agonizam na mais pavorosa esterilidade, na mais cruel frustração. Quando me contam que a estatística de suicídios, na Suécia, atinge proporções inéditas, bem entendo esse feroz tédio sueco. Falta a seus homens e falta às suas mulheres o incentivo mágico, vital, do ódio.
Na minha infância, o ódio era o argentino. Odiávamos o argentino. Eu, garoto, de seis, sete anos, ficava ouvindo a con­versa dos adultos. Tinha-se como certo que, mais dia, menos dia, íamos brigar com a Argentina. Meu irmão Roberto me di­zia: — “Os argentinos chamam os brasileiros de macaquitos!”. E, por muitos e muitos anos, aquilo me doeu na carne e na al­ma. Era como se fosse eu o macaquito, eu a vítima única do insulto direto e crudelíssimo.
Mas o barão do Rio Branco cometeu um erro, a meu ver grave. Era um estadista. Mas vejam vocês: — nem sempre o estadista é psicólogo. Não percebeu que devia promover, e não contrariar, a nossa paixão contra a Argentina. Um bom ódio, obsessivo e unânime, é a melhor, a mais eficaz, a mais fascinan­te distração de um povo. O vizinho, a família ou o povo que odeia esquece todas as outras questões vitais. Dito isto, passo adiante.
Até que um dia (ainda estou falando de Brasil x Argenti­na), até que um dia houve um episódio. Seria, em outras circuns­tâncias, um fato secundário, intranscendente e, mesmo, humo­rístico. Mas o povo viu o incidente através da óptica monumental do ressentimento. E, de repente, a cidade saiu para as ruas. To­do mundo se juntou no largo de São Francisco. Hoje, passo anos sem pisar no largo de São Francisco e sem ouvir-lhe o nome. De vez em quando, chego a me perguntar: — “Será que existe o largo de São Francisco?”. Se não existe hoje, naquele tempo existia.
E a multidão veio para o largo de São Francisco exigir “guer­ra”. Queríamos mobilização fulminante e fulminante invasão. E o barão do Rio Branco foi avisado. Largou o gabinete e veio, de carro aberto, para a praça pública. Quando chegou ao largo de São Francisco, recebeu uma tremenda ovação. Naturalmen­te, viria trazer também o seu grito de guerra. Em pé, no carro, com a sua nobilíssima barriga, ele fez um gesto de silêncio. Pe­dia silêncio e fez-se o silêncio. E, então, ele ergueu o chapéu: — “Viva a Argentina!”. Pausa. O povo estava mudo, num des­ses espantos jamais concebidos. E o nosso Paranhos repetiu: — “Viva a Argentina!”. E, então, subiu das entranhas da massa o berro triunfal: — “Viva a Argentina!”.
Mas, repito, foi um erro. Volto ao que dizia. Como pode viver uma rua se, entre vizinhos, entre famílias, não explode um desses sentimentos fortes e exterminadores? Assim o povo. Nada como um ódio geral para uni-lo, para dar-lhe uma tensão nacional e dinamizar suas potências criadoras. Realmente, nin­guém trai o seu ódio e repito: — o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor.
Vimos que, em dez minutos, saímos do “morra a Argenti­na” para o “viva a Argentina”. Anos depois, o barão morreu; e seu enterro, segundo as testemunhas, foi maior que o de Inês de Castro. Mas eis o que eu queria dizer: — a partir de então, o povo teve alguns ódios locais, com graus diferentes de inten­sidade: — um deles foi Pinheiro Machado. Mas o ódio a Pinheiro foi mais retórica do que paixão. Era, digamos assim, um ódio de comício. Foi apunhalado por um discurso. Tivemos também Bernardes. Eu, com nove anos, odiei Bernardes; os meninos de Aldeia Campista odiaram Bernardes. Mas era pouco para o nos­so coração. O ódio que rende mais, que dá dividendos mais ge­nerosos, exige o estrangeiro.
Graças a Deus, descobrimos o americano. O americano foi, mais que um ódio, uma solução. Se odiamos o americano, não precisamos nem amar o Brasil. Não exagero nada. A evidência está aí: — o Brasil é um país por fazer. Fazer o Brasil seria a nos­sa tarefa. Não damos um passo sem esbarrar, sem tropeçar num problema. Tudo no Brasil é problemático. Mas reparem: — quan­to mais odiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, re­pito, menos o amamos. O Vietnã está mais próximo de nós do que Magé. E sabem por que essa impotência nacional para qual­quer trabalho sério? Por causa dos Estados Unidos.
Mas temos as nossas elites. As elites, porém, estão entretidas em odiar o americano. E não tapam um buraco de rua, não soldam um cano furado, não desentopem uma bica. Na hora de pichar o muro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Tsé-tung, e a Guevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais.
Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas. E convém falar, em especial, dos nossos intelectuais. São socia­listas, em sua maioria absoluta. Pode-se perguntar: — à manei­ra sueca? Não e jamais. Ninguém fala da Suécia, porque lá não houve sangue, nem ódio, nem extermínio, nem escravidão. Por­tanto, a Suécia não interessa. O nosso intelectual está de olho no socialismo totalitário da Cortina de Ferro. Dirá alguém que ele, intelectual, por boa-fé, ingenuidade ou simplesmente bur­rice, é vítima de uma funesta ilusão. Mentira. Ninguém que li­gue duas idéias tem o direito de se iludir a tal ponto. A expe­riência socialista é a mais gigantesca e vil impostura do nosso tempo. E o intelectual é o primeiro degradado, sempre. O ro­mancista, o poeta, o cineasta, o dramaturgo, o crítico, o artista plástico, o compositor, todos, todos são rigorosamente escravos. E quando um ou outro insinua um vago lamento, vem a polícia e o interna como louco. E os psiquiatras do Estado o tratam como doente mental perigosíssimo. Ou, então, é fisica­mente destruído.
Uma dona de casa que me leia há de perguntar: — “Mas o nosso intelectual sabe disso e, apesar disso, quer isso mesmo?”. Quer. A maioria quer. Pergunta: — “E por quê?”. Como diz um vizinho meu: — “Há gosto pra tudo”. Diria mais que, por uma fatal coincidência — fora poucas exceções, suicidas —, o inte­lectual não resiste ao totalitarismo comunista. Tem sido assim em toda a Cortina de Ferro. Jamais insinua um protesto contra o estupro da liberdade, da inteligência, das artes e da pessoa hu­mana.
Volto às elites. Temos aí artistas, escritores, médicos, arquitetos, cineastas, professores, os grã-finos. Ninguém faz o Bra­sil, porque só temos tempo de odiar o americano. E fica todo mundo numa deliciosa e alienada inércia contemplativa. Sim, o ódio ao americano é o ópio das elites brasileiras.
[15/8/1968]

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