terça-feira, 31 de março de 2009

OS MILITARES

Um sarau de grã-finos é mais ressoante do que uma con­cha marinha. Por lá, passam todas as vozes do Brasil e do mun­do. E nem pensem que exagero. Nem tanto, nem tanto. Tenho falado muito na única grã-fina gorda da vida real. Com uma fina sensibilidade histórica e um sutil faro profético, tem antecipa­ções assustadoras. Quantas vezes não diz, hoje, a manchete de amanhã?
Foi justamente a grã-fina gorda que me ligou, anteontem. Era um convite: — “Espero você, hoje. Mas olhe: — sem fal­ta”. Explicou que não era festa: — “Uma reunião de amigos. Coisa íntima”. Eu queria dormir cedo, mas a grã-fina gorda é irresistível. Capitulei: — “Está bem. Vou”. E só no fim, baixan­do a voz, disse: — “Vem também um coronel, que é a maior cabeça do Exército”. E assim nos despedimos.
À minha amiga vive no que a Manchete chama de um dos “Mais belos interiores do Brasil”. Nove, nove e pouco estou lá. Chego e vou perguntando pela “maior cabeça do Exército”. Ainda não chegara. Insisto: — “Vem mesmo ou vai dar o bo­lo?”. Minha anfitriã fazia tanto suspense, tanto mistério, que não me Contive: — “Será um Napoleão talvez?”. E ela: — “Quem sabe?”.
Paramos por aí. Tenho uma vizinha e leitora que me atri­bui uma fértil imaginação. O fato é que comecei a tecer as mi­nhas desvairadas fantasias. Quis acreditar que o nosso coronel, mais esperado do que um messias, tivesse mesmo uma dimen­são napoleônica. A grã-fina gorda insinuara um “quem sabe?” altamente excitante. Logo percebi, porém, que, com exceção da dona da casa, todos, ali, eram de um antimilitarismo feroz. Um grã-fino pôs gelo no uísque e dizia: — “O lugar dos milita­res é no quartel!”.
A grã-fina gorda insinuou a objeção: — “As Forças Arma­das também são filhas de Deus!”. Protestos: — “Não, senhora! Absolutamente! O papel do Exército não é esse!”. E a palavra de ordem que se instalou, ali, e com a maior veemência, foi mais ou menos esta: — “Os militares não são filhos de Deus”. A dona da casa já implorava: — “Vamos mudar de assunto. O coronel deve estar chegando!”. Mas um dos convidados, obeso como um Nero de Cecil B. de Mille, encarniçou-se: — “Não, senhora. Desculpe, mas os militares precisam ouvir certas verdades!”. Ou­tros concordaram: — “Isso mesmo! Perfeitamente! Onde é que nós estamos?”.
Improvisou-se uma unanimidade, segundo a qual a função constitucional dos militares é lavar cavalos nos quartéis. Dizia-se: — “Os militares nunca fizeram nada pelo Brasil!”. Até que, de repente, entra o coronel. Vinha sem sabre, esporas e pena­cho, em trajes chatamente civis. Não lhe farei nenhuma descri­ção física e explico: — não quero que ninguém o identifique. Mas entra e logo percebi que tinha o gênio do cumprimento. Saiu apertando a mão dos homens e beijando a mão das senho­ras. Já a grã-fina gorda, no seu fervor promocional, cochichava para um e outro: — “Uma cabeça! Uma cabeça!”.
O curioso é que o colarinho e a gravata do coronel con­fundiram um pouco os presentes. Os civilistas ali presentes es­peravam talvez ou que ele entrasse a cavalo ou, pelo menos, de esporas, sabre e penacho. E aquele coronel a pé, com um terno da Ducal e, além disso, de uma polidez quase humilde, foi uma decepção amarga. Outro dissabor foi quando o garçom ofereceu uísque e ele recusou: — queria água. “Água mineral. Sem gás.” E, risonhamente, explicou para os lados: — “Gosto de Lindóia, porque é água da bica”.
Os presentes entenderam que a água mineral não era sede, mas pose. O militar fingia uma pureza de costumes ou, se assim posso dizer, uma espécie de castidade alcoólica. Houve um si­lêncio. E, de repente, de copo na mão, ergueu-se o Nero de Hollywood. Com a malignidade do pileque pergunta: — “Co­ronel, permite um aparte?”. Ninguém estava falando e ele pe­dia um aparte ao silêncio. O militar acabava de tomar a água da bica engarrafada: — “Pois não, pois não!”.
O pau-d’água grã-fino insiste: — “Posso dizer tudo?”. E o outro: — “Tudo!”. Em pé, o Nero, no seu movimento de fluxo e refluxo, ameaçava entornar o copo no decote mais à mão. Pergunta: — “Quando é que vocês vão voltar à caserna? O d. Hél­der já disse: — “Voltem às casernas!”. Pausa. O outro, risonho, ainda espera. E o grã-fino das bochechas e da papada: — “Pode-me dizer quando vocês militares voltam para a caserna?”.
O coronel responde: — “Voltar, por quê? Se nós nunca saí­mos da caserna?”. Houve, ali, um espanto maravilhado. Aquilo enfureceu o Nero: — “E esse governo, coronel? O senhor nega que só há militares na minha frente! Só militares!”. E apontava os presentes como se todos ali estivessem de sabre, esporas e penacho. — “Hem, coronel? O senhor nega?” Disse, pousan­do, ao lado, o copo de água da bica: — “Nego”. Levantou-se: — “Posso falar?”.
A grã-fina, excitadíssima, pedia silêncio: — “O coronel vai falar”. E, então, andando de um lado para outro, sem nenhum ardor polêmico, ele ia falando: — “Todo mundo manda no Bra­sil, todo mundo pia no Brasil, menos as Forças Armadas”. Num repelão, o bêbedo rugiu: — “E os tanques? E os tanques?”. O coronel deu a sua primeira gargalhada, como se o outro esti­vesse falando de tanques de lavar roupa. Explicou então que os facinorosos tanques têm quase a domesticidade dos cachor­ros velhos.
Insistiu em que nunca, nunca, as Forças Armadas influíram tão pouco. Citou um exemplo concreto: — “A Arena. Que me diz o amigo? Eu sei que a Arena não é nada. Um sopro de velinha de aniversário basta para apagar a Arena. Ou não é? Meu amigo, quer fazer uma experiência? Vá à Câmara. Entre lá e, du­rante a sessão, dê o berro: — ‘Olha o rapa!’. Sabe que é que ia acontecer?”. Fez um suspense teatral. O Nero estava quase dormindo em pé.
Desta feita, o coronel exaltou-se. Dava pulos: — “Vocês vão ver a Arena sair correndo, pular a janela e nunca mais apa­recer”. Como que arrependido do exagero histriônico, e arque-jante da falsa cólera, completou mais contido: — “E nós acre­ditamos na Arena. As Forças Armadas acreditam na Arena. O governo acredita na Arena. A Arena é ouvida. Se ouvem a Are­na, tudo é possível”. Respira fundo: — “E ninguém desconfia que não se faz o Brasil com Arenas”. Estava acabando: — “Saí­mos da caserna para derrubar o Jango. E, depois, voltamos e estamos encerrados lá como monges. Há um mosteiro em que os monges fazem voto de silêncio. Nós somos os monges do silêncio político”. Puxa o lenço e enxuga o suor da testa. Depois, sai apertando a mão dos homens e beijando a mão das senho­ras. A grã-fina gorda foi levá-lo até à porta. O Nero já não tinha forças para falar. De olhos fechados continuava no seu fluxo e refluxo. Acabou vomitando no decote mais próximo.
[14/10/1968]

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