segunda-feira, 30 de março de 2009

A PATUSCA

Entro na redação e o Carlos Tavares avisa: — “Olha. O correspondente do Paris-Match telefonou”. Ora, sou, como se sa­be, um pobre jornalista brasileiro, que tem de espremer o cére­bro para subvencionar o sapato da mulher e o leite do caçula. Trabalho demais e, como se sabe, jamais o trabalho promoveu a ascensão social e econômica de ninguém. Para um brasileiro pobre e, além de pobre, medíocre, um telefonema do corres­pondente do Paris-Match abre uma janela para o infinito. Ainda perguntei ao Tavares: — “Tens certeza de que sou eu mesmo?”. O colega só faltou estender a mão sobre uma bíblia invisível e jurar.
Portanto, era mesmo comigo. Sentei-me à mesa para escre­ver a minha confissão. Logo, porém, tornaram-se irrelevantes, secundários, os problemas sociais, humanos, políticos e estilís­ticos de minha coluna. Só o telefonema importava. O que me fascinava era a hipótese de uma entrevista. Imaginei-me falan­do para o mundo. Mas logo travei a minha fantasia. Uma entre­vista parecia demais e, realmente, eu não merecia tanto.
Fosse como fosse, o simples fato em si mesmo era uma hon­ra. E, de repente, o Carlos Tavares me chama: — “Paris-Match, outra vez!”. Corro, com uma sufocante dispnéia emocional. Di­go: — “Alô! Alô!”. Era, sim, o homem. E começou a falar. Mas ai, não se tratava de mim, nem de meus feitos, livros, peças e metáforas. Ele queria apenas informações sobre a “grã-fina gor­da”. Por um momento, a minha perplexidade assumiu propor­ções trágicas. Ainda repeti: — “Grã-fina gorda?”.
Custei a me lembrar que, dias antes, numa de minhas crônicas, falei, de passagem, numa “grã-fina” realmente gorda e realmente patusca como as viúvas machadianas. O Paris-Match queria saber se era fantasia ou fato. O curioso é que não era o primeiro que me interpelava a respeito. Inúmeras pessoas liga­ram para mim, intrigadíssimas: — “Mas existe mesmo? Ou é pia­da?”. Muitos achavam que se tratava de uma gorda irreal, de pura e irresponsável ficção. Tive de explicar que não, que ab­solutamente. Existia, sim. Dei a minha palavra de honra.
Ao correspondente do Paris-Match forneci informações confidenciais: — “É uma das amantes espirituais do Guevara”. Esse dado íntimo, glorioso e revolucionário, causou o melhor efeito. Mas a curiosidade do colega francês era insaciável. Que­ria saber mais, cada vez mais. Contei-lhe, então, o drama da ilus­tre senhora. Eis o caso: — era gorda sem o saber ou sem ligar à própria gordura. Até que, um dia, alguém lhe deu um retrato de Guevara, com aquele olhar de santo e aquela barba de fau­no. Foi uma paixão fotográfica e à primeira vista.
Só então baixou-lhe a súbita e inexorável consciência da própria gordura. Por uma dessas coincidências, que o diabo ex­plica, começou a receber telefonemas anônimos, em que era chamada de “Abade da Brahma” para baixo. Passou a odiar as balanças, e explico: — a balança é o espelho das gorduchas. Ora, a classe média suporta a obesidade mais generosa. Não o grã-finismo. O grã-finismo é extremamente escasso de cadeiras, bus­tos. E pior: — o retrato de Guevara era mais inclemente do que uma balança. O simples olhar do Che a esmagava.
Do outro lado da linha, o correspondente do Paris-Match dizia: — “Muito interessante, muito interessante!”. Continuei: — até que, certo dia, em conversa com um. padre de passeata, ela abre o coração. Dizem que grã-fina não chora, mas ela cho­rou: — “Eu me sinto uma baiaca!”. E, então, o sacerdote co­meça: — “Já experimentou passeata?”. A princípio, não enten­deu. Com fina malícia, o outro insinua: — “Passeata é muito bom. Para emagrecer, não há como a passeata”. E o religioso citou o próprio exemplo: — “Estou com menos barriga”. Para convencê-la, girou como uma modelo profissional. Ou por su­gestão, ou porque queria ser amável, ela admitiu: — “É mesmo! É mesmo!”. E disse mais, o padre, gravemente: — “A passeata faz bem à aerofagia. Melhor do que remédio da Flora Medici­nal”.
Desde então, a única grã-fina gorda da vida real não perde uma. Tem uma frota de intelectuais, de estudantes, que avisam: — “Hoje tem”. E lá vai ela, feliz. Quando houve a histórica dos “100 Mil”, foi a primeira a chegar e a última a sair. O padre da aerofagia deu-lhe instruções técnicas lapidares: — “Transpire, transpire”. A gorda teve um escrúpulo desculpável. Realmen­te, uma grã-fina vai do berço ao túmulo sem transpirar, jamais. O suor é coisa da classe média para baixo. Mas por amor de Gue­vara fez o sacrifício e transpirou como uma moradora do En­cantado.
O homem do Paris-Match quis saber se a Ana Karenina do retrato tinha perdido peso nas marchas das esquerdas. Disse-lhe: — “Até aqui uns oitocentos gramas”. Passara dos cem qui­los para os 99. E o colega perguntou: — “E o retrato do Che? Como tem reagido?”. Respondo: — “Maravilhosamente”. Sim, o retrato passou a tratá-la com outro charme. Houve mesmo um dia em que teve a sensação de que Guevara piscou-lhe o olho. Radiante, a grã-fina promove o remédio entre as amigas: — “A sauna é uma ilusão. Só a passeata emagrece. E serve também para aerofagia”.
O colega indaga: — “Ela participou também da passeata invisível?”. Preciso explicar. No seu último artigo, diz o meu do­ce amigo Hélio Pellegrino que houve uma passeata contra a reu­nião dos exércitos americanos. Acontece, porém, que ninguém viu tal passeata, e repito: — nenhuma pessoa, viva ou morta, enxergou tal passeata. A coisa deve ter ocorrido dentro da mais rigorosa invisibilidade. Quinhentos agentes do Dops não per­ceberam nada. Nem a reportagem, nem os transeuntes, ninguém. Mas a nossa gorducha não podia faltar, ainda que se tratasse de uma passeata espectral. Lá estava ela, a única. Pingava como um jogador de futebol depois de noventa minutos de pelada.
Expliquei que os oitocentos gramas custaram um martírio inenarrável. O que isso significa de disciplina interior, de von­tade atroz, de energia sobre-humana! Outra qualquer não teria problemas. Mas a nossa heroína é um dos maiores apetites ter­renos. E o pior é que, tendo saído em “Os mais belos interiores do Brasil”, que Manchete publica, tem uma fome de favelada. Sim, deu-lhe Deus uma fome nada seletiva. É capaz de comer a empada que matou o guarda. Mas o amor abre, sobre nossas cabeças, a bica dos milagres. Uma noite, o retrato de Guevara parecia mais frio do que o costume. Sentindo-se esnobada, ela jurou que, daí por diante, só tomaria chá com torradas. Ora, Guevara não acreditou, e vamos e venhamos: — o sujeito só toma chá nos romances e nunca na vida real. Mas a nossa gorda estava mesmo disposta a cumprir o juramento. Foi a umas três festas e, na sua fidelidade ao Che, não tocou num mísero salgadinho.
Na quarta festa, porém, foi demais. O seu apetite dava arrancos triunfais. Até que não se conteve. Passou uma bandeja. Apanhou um salgadinho e o enfiou no seio. Cinco minutos de­pois, outra bandeja. Outro salgadinho sumiu no decote. E as­sim, sucessivamente. Depois, ficou olhando a mesa. Deixou que todos se servissem. E, quando não havia mais ninguém, foi lá, apanhou uma lagosta e a introduziu pelo decote. (Dirá alguém que, a comportar tamanha lotação, seu busto é o próprio Seio de Abraão. E é.) Fez mais: — numa alucinação, foi à cozinha e arrebatou uma garrafinha de refrigerante. Ato contínuo, trancou-se no banheiro. E, lá dentro, foi comendo, comendo. Na hora de beber, quase engoliu a garrafinha com chapinha e tudo, co­mo um elefante de circo.[11/10/1968]

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