sábado, 7 de março de 2009

WERTHER

Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão cario­ca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade. Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensa­ção de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado.
Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: — “Nelson! Nelson!”. Era o Palhares, “o que não respeita nem as cunhadas”. Na cal­çada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome. E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trom­bada.
Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavou o rosto há quinze minutos. E anunciou: — “Tenho uma pra te contar, menino!”. Imaginei que devia ser a sua última con­quista. O Palhares tem sempre uma “última conquista”. E ele, já de olho rútilo, ia começar. Súbito, balbucia: — “Até logo, até logo!”. Segurei-o pelo braço: — “Que é isso, rapaz?”. Diz, baixo: — “Vem aí o Torres. Já me viu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro. Adeus!”. Largou-me e fugiu.
E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar. Atravessei para a Câmara, dobrei Evaristo da Veiga e fui andando, rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, “o homem de bem”, justificariam o meu horror e o do Palhares. O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as es­quinas, salas e retretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me de um dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — “Sou um homem de bem! Sou um ho­mem de bem!”. E quando ele aparece as pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do que isso, o rapa.
Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promo­ver tal esmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atro­pelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor.
Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet. Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem do esporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o Abrahim Tebet “ser humano”. Muita gente só tem de huma­no o terno, a gravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguém parecido com o ser humano.
Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo de presidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura paté­tica e, eu quase dizia, chapliniana, a do “empossado”. Depois do governador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Ima­ginei: — “Vai chorar!”. Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar a própria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da Casa Civil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Mas o nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, num suntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria para mim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficial estarrecia os mais tímidos.
Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Vol­to a ele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Tor­res, que se badala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bem às escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom com vergonha de o ser. Quando ele dei­xou a cbd, houve quem sussurrasse o vaticínio: — “Vai mor­rer de fome”. Aí está. Abrahim, o doce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.
(Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o riso luminoso e forte dos sátiros vadios.) Falei de Abrahim e passo ao Nelsinho Motta. Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não só cronista: — também homem de tv, da canção, do romance (ainda não escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E o Nelsinho, que é romântico por dentro e por fo­ra, romântico no terno, romântico na gravata, romântico na cal­ça de veludo e romântico na palidez. Faço ponto, porque já vou arquejando. E, como ia dizendo: — o Nelsinho escreveu, justa­mente, contra os românticos. Há uma rapaziada aí que anda be­bendo nas fontes líricas da música popular. E meteu-lhe o pau.
Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda uma imagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seria um vampiro saudoso de carótidas, querendo be­ber o sangue gelado da burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, nin­guém mais fremente, ninguém mais pungente. E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo.
Dirá o leitor: — “E Roda viva?”. Ah, Roda viva é também o anti-Chico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Cel­so. O diretor sentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não há uma janela. Ora, o Chico tem, como as modi­nhas antigas, a obsessão das janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (de Hermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — “Pela janela da saudade” etc. etc. Aí está insinuada a Carolina.
E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som de moeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, to­dos nós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazer um pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outro devia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fron­te alta: — “Damas e cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e here­ditário”. E o Sérgio Buarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil? Em várias entrevistas, já declarou: — “Eu sou ape­nas o pai do Chico”. Eis um gesto do piegas radical e incontrolável.
Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma feroz polêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu, velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, com todo o esplendor das Novas Gerações. Mas não há tal polêmica. O Nelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mim as minhas próprias piadas. Quando cru­zar com esta figura da belle époque, hei de perguntar-lhe: — “Quando é o pacto de morte?”. E dirá ele, pálido como um Wer­ther: — “Estou caprichando”.
[8/8/1968]

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