sexta-feira, 6 de março de 2009

O PAULISTA

Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone. Atendo: — era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: — “Como vai? Há quanto tempo!”. E, de fato, não nos víamos há uns três anos. Ou mais. Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão pouco a São Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro vezes. Só. E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos. Creio que de ambos.
Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não me engano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil x Tchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos jun­tos, ou por outra: — só me lembro da minha torcida. A dele apagou-se completamente na minha memória. Do Pacaembu saí­mos para jantar. Jantamos. E já me pergunto: — será que janta­mos mesmo? Sei lá. Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Fazia um frio tão feroz — era junho — que, em dado momento, tive vontade de chorar, sentado no meio-fio.
O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito. Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subven­cionou tudo. E fez questão de me levar no trem. Desembarquei no Rio e me saturei, até os sapatos, de vida carioca. Passa-se o tempo e, de vez em quando, me lembrava do paulista. Via com a maior nitidez a sua cara, o terno, a camisa, e nada mais. Lembrava-me, sim, do seu pigarro. Mas não me ficara de nossa convivência uma palavra, uma frase, um “boa-noite”, um “adeus”. Cheguei a pensar que, em minha passagem por São Paulo, ou eu era surdo ou ele mudo. Mas claro que se tratava de uma ilusão auditiva: — até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar palavrões etc. etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro.
Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, mais do que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei, patético: — “Você não imagina a minha ale­gria”. Quis saber: — “Quanto tempo vai passar aqui?”. Resposta: — “Dois dias”. Ao sair do telefone, juntei ao pigarro mais umas quinze palavras. Vejam bem: — quinze palavras e um pigarro tinham, para mim, quase que a abundância de uma ópera.
Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor. Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte, fo­mos ao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. De manhã, compareci ao aeroporto. Perguntei-lhe: — “Até quan­do?”. Teve um sorriso inescrutável e não disse uma palavra. Por fim, tomou o avião e partiu. Vim embora e aqui começa a minha trágica perplexidade: — eu voltava à mesma situação. O outro era um paulista fino, inteligente, um homem de sensi­bilidade, de imaginação. Há momentos em que o mais incomu­nicável dos homens tem que fazer uma confidencia. Ou faz uma confidência ou morre.
E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera nenhuma confidência. A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de silên­cio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então, acon­teceu esta coisa vagamente alucinatória: — éramos dois silêncios que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, be­biam, fumavam e se entreolhavam. Deu-me, por vezes, a von­tade de ouvir-lhe o som do pigarro. Se não tinha o que dizer, podia dar-me a esmola auditiva de um pigarro. Por imitação in­consciente, eu ia-me tornando paulista também.
Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeira buzina que ouvi deu-me uma desesperada euforia. Pensei: — “Ao menos as buzinas falam!”. Entrei na redação e fui adiantar serviço. Passei dez minutos diante da máquina. Mas não me ocor­ria absolutamente nada. O papel estava na máquina, branco, virginal. Acabei decidindo: — “Vou escrever sobre o kaiser”. Mas quando comecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: — “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. Reli, honesta­mente espantado. A coisa nascera sem nenhuma elaboração pré­via. Continuei a escrever. Expliquei a verdade, isto é, que a frase me escapara sem querer. E fiz toda uma crônica sobre o kaiser.
Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. Clô Prado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: — “Como é verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!”. Nessa mesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidados achou que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadual inapelável e eterna. Já no fim da madrugada, uma terceira pessoa me levou para os fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi, perto da piscina, que conversamos.
Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que o paulista é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidável superioridade sobre todos os outros brasileiros. E o que explica a epopéia industrial de São Paulo é a solidão. Realmente, o pau­lista é capaz de viver, amar, envelhecer sem fazer jamais uma confidência, nem ao médium depois de morto. Os demais bra­sileiros são extrovertidos ululantes, está certo. Mas não fazem o Brasil. O único que faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é São Paulo. Fiz-lhe a pergunta: — “O senhor é paulista?”. Era.
Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor. Imaginem que a da solidão paulista ainda me rende bons dividendos. On­tem, por exemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Veio a pergun­ta: “Seu Nelson?”. E eu: — “Pois não”.
Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquie­to. Continua: — “Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor es­creveu”. Eu não digo nada ou, melhor, digo: — “Ah, sim, sim”. Evidentemente, era a frase. Pergunto: — “A senhora concorda ou não?”. E a voz de anjo defunto: — “Foi a maior verdade que o senhor já disse na sua vida. O senhor é paulista?”. Quase pedi desculpas de ser pernambucano. Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: — oitenta. Era paulista há oitenta anos. Ca­sada desde os quinze, vivera com o marido, outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, não sei onde. E passavam dias, se­manas, meses de silêncio total. Muitas vezes, ela já não se lem­brava de como era a voz do marido e chegava a esquecer a pró­pria. E a velhinha me perguntou: — “O senhor acredita se eu lhe disser que enterrei meu marido na semana passada?”. Acre­ditei. Em mais de meio século de coabitação, nem lhe conhece­ra o gemido, o simples gemido. Um ficava escutando o silêncio do outro. Ele agonizara sem gemer. E, depois, lá foi ela para a capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido.

[7/8/1968]

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