Um dia, Lúcio Cardoso me disse: — “O assassinato de seu irmão Roberto está naquela cena assim, assim, de Vestido de Noiva”. Era verdade. Eu não sei se vocês se lembram de Vestido de Noiva. Como todos os meus textos dramáticos, é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes. E, além disso, há, no seu desdobramento, na sua estrutura, o rigor formal de um soneto antigo.
Já minhas outras peças são muito mais selvagens. Mas o que tocou Lúcio Cardoso foi uma cena, ainda no primeiro ato, cena de uma mulher matando um homem. E, segundo o romancista, eu estaria fazendo, ali, uma imitação da vida. Era Roberto que morria outra vez, assassinado outra vez. E confesso: — o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto.
Comecei pelo dia seguinte. E não falei da véspera e da antevéspera. Quero dizer que Roberto sempre me parecera muito mais um suicida. Teve sempre um olhar, uma atmosfera, um halo de quem vai morrer cedo. Vejam sua obra. Não sei se já escrevi que ele desenhava a própria cara nos bêbados, loucos e enforcados de sua ilustração. Lembro-me de uma ilustração: — um homem era esfaqueado; e a vítima era ele.
A vítima, a vítima. Era sempre ele que morria, assassinado pelos outros. E era sempre ele que pendia de uma forca; ou se deitava num caixão. Eu tive uma doce tia que, meses antes de morrer, unia, entrelaçava as mãos. A filha vinha corrigir o gesto fúnebre. Minha tia perguntava: — “Não é assim que se morre?”. Eis o que eu queria dizer: — também Roberto ensaiou a própria morte.
Morrera antes, e muitas vezes, nas ilustrações, nos quadros, nas esculturas. E nunca, nunca, em momento nenhum, ele foi o que mata, ele foi o que fere. Era sempre o morto, sempre o ferido, e sempre o enforcado. Mas repito que jamais pensei no assassinato. Eu o via muito mais como o suicida (e era belo como o suicida).
Foi uma tragédia que quase destruiu minha família. Pensei, em certos momentos, que nenhum de nós sobreviveria; e que aquilo era o fim de cada um e de todos. Foi o fim de meu pai, que morria dois meses depois. A mesma bala que se cravou na espinha de Roberto matou o velho Mário Rodrigues. Mas o que preciso dizer, aqui, é que eu me sentia mais ferido do que os outros.
Minha mãe quase enlouqueceu; meu pai morria, em seguida. E meus irmãos e minhas irmãs uivavam — digo “uivavam” — de desespero e de ódio. Todos nós tínhamos vergonha de estar vivos e Roberto morto. Mas só eu vira e ouvira. Só eu fora testemunha ocular e auditiva de tudo. De vez em quando, antes de dormir, começo a me lembrar. Vinte e seis de dezembro de 1929. E as coisas tomam uma nitidez desesperadora. A memória deixa de ser a intermediária entre mim e o fato, entre mim e as pessoas. Eu estou em relação física, direta, com Roberto, os outros, os móveis.
São duas da tarde ou pouco menos. É a redação da Crítica, na rua do Carmo. Ao lado, há uma serraria; e, em seguida, um restaurante, chamado Virosca ou coisa que o valha. Estamos eu, Roberto, o chofer Sebastião, que servia meu pai há anos e anos; o detetive Garcia, que ia muito lá, conversar fiado. Roberto acaba de tomar uma cajuada. Eu não me lembro do contínuo que fora buscar o refresco. É essa a única presença que me falta.
Ouço a voz perguntando, cordial, quase doce: — “Dr. Mário Rodrigues está?”. Não ocorreu a nenhum de nós a mais leve, tênue, longínqua suspeita de nada. Como desconfiar de uma naturalidade total? O chofer Sebastião respondeu: — “Dr. Mário Rodrigues não está”. Nova pergunta: — “E Mário Rodrigues Filho está?”. “Também não”. Continua, perfeita, irretocável, a naturalidade de maneiras e de tudo. Vejo os passos que vão até a sala da frente. É empurrada a porta de vaivém. Ninguém lá. Os passos voltam.
A voz pede (e já um vago sorriso): — “O senhor podia me dar um momento de atenção?”. Roberto está do outro lado da mesa, sentado. Ergue-se: — “Pois não”. Enquanto ele faz a volta, passando por mim e por Sebastião, os passos vão na frente, entram pela porta de vaivém. Roberto entra, em seguida. Ele tinha 23 anos. Era pai de duas crianças, Sérgio Roberto e Maria Tereza. Sua mulher estava grávida (e Vera Maria seria a filha póstuma).
Enquanto Roberto caminhava para a sala, eu me dirigia para a escada. Ia ao café, na esquina da rua do Carmo com Sete de Setembro. Lá dentro, não houve tempo para uma palavra. Roberto levou o tiro ao entrar. Parei com o estampido. E veio, quase ao mesmo tempo, o grito. Não apenas o grito do ferido, mas o grito de quem morre. Não era a dor, era a morte. Ele sabia que ia morrer, eu também sabia.
Todos corremos. Na frente, de revólver na mão, ia o detetive Garcia. Atrás, Sebastião, eu me lembro, agora me lembro: — um bom crioulo, o Quintino, cego de um olho. Eis o que vi: — Roberto caíra de joelhos; crispava as duas mãos na mão que o ferira. O detetive apontava o revólver. A voz estava dizendo: — “Vim matar Mário Rodrigues ou um dos filhos”. Simplicidade, doçura. Matar Mário Rodrigues ou um dos filhos.
Naqueles cinco, seis minutos, acontecera tudo (e como, nesses momentos, a figura do criminoso é secundária, nula. Eu não me lembrei da ira; eu não pensei em também ferir ou em também matar. Só Roberto existia. Estava ali, deitado, certo, certo de que ia morrer. Pedia só para não ser tocado. Qualquer movimento era uma dor jamais concebida). Vinte e seis de dezembro de 1929. Nunca mais me libertei do seu grito. Foi o espanto de ver e de ouvir, foi esse espanto que os outros não sentiram na carne e na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraçado ao grito do meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues.
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