terça-feira, 28 de abril de 2009

Capítulo 22 - A Menina sem Estrela

Um dia, Lúcio Cardoso me disse: — “O assassinato de seu irmão Roberto está naquela cena assim, assim, de Vestido de Noi­va”. Era verdade. Eu não sei se vocês se lembram de Vestido de Noiva. Como todos os meus textos dramáticos, é uma meditação sobre o amor e sobre a morte. Mas tem uma técnica especialíssima de ações simultâneas, em tempos diferentes. E, além disso, há, no seu desdobramento, na sua estrutura, o rigor for­mal de um soneto antigo.
Já minhas outras peças são muito mais selvagens. Mas o que tocou Lúcio Cardoso foi uma cena, ainda no primeiro ato, cena de uma mulher matando um homem. E, segundo o romancista, eu estaria fazendo, ali, uma imitação da vida. Era Roberto que morria outra vez, assassinado outra vez. E confesso: — o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se eu não ti­vesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto.
Comecei pelo dia seguinte. E não falei da véspera e da antevéspera. Quero dizer que Roberto sempre me parecera mui­to mais um suicida. Teve sempre um olhar, uma atmosfera, um halo de quem vai morrer cedo. Vejam sua obra. Não sei se já escrevi que ele desenhava a própria cara nos bêbados, loucos e enforcados de sua ilustração. Lembro-me de uma ilustração: — um homem era esfaqueado; e a vítima era ele.
A vítima, a vítima. Era sempre ele que morria, assassinado pelos outros. E era sempre ele que pendia de uma forca; ou se dei­tava num caixão. Eu tive uma doce tia que, meses antes de mor­rer, unia, entrelaçava as mãos. A filha vinha corrigir o gesto fúne­bre. Minha tia perguntava: — “Não é assim que se morre?”. Eis o que eu queria dizer: — também Roberto ensaiou a própria morte.
Morrera antes, e muitas vezes, nas ilustrações, nos quadros, nas esculturas. E nunca, nunca, em momento nenhum, ele foi o que mata, ele foi o que fere. Era sempre o morto, sempre o ferido, e sempre o enforcado. Mas repito que jamais pensei no assassinato. Eu o via muito mais como o suicida (e era belo co­mo o suicida).
Foi uma tragédia que quase destruiu minha família. Pensei, em certos momentos, que nenhum de nós sobreviveria; e que aquilo era o fim de cada um e de todos. Foi o fim de meu pai, que morria dois meses depois. A mesma bala que se cravou na espinha de Roberto matou o velho Mário Rodrigues. Mas o que preciso dizer, aqui, é que eu me sentia mais ferido do que os outros.
Minha mãe quase enlouqueceu; meu pai morria, em segui­da. E meus irmãos e minhas irmãs uivavam — digo “uivavam” — de desespero e de ódio. Todos nós tínhamos vergonha de estar vivos e Roberto morto. Mas só eu vira e ouvira. Só eu fora testemunha ocular e auditiva de tudo. De vez em quando, an­tes de dormir, começo a me lembrar. Vinte e seis de dezembro de 1929. E as coisas tomam uma nitidez desesperadora. A me­mória deixa de ser a intermediária entre mim e o fato, entre mim e as pessoas. Eu estou em relação física, direta, com Roberto, os outros, os móveis.
São duas da tarde ou pouco menos. É a redação da Crítica, na rua do Carmo. Ao lado, há uma serraria; e, em seguida, um restaurante, chamado Virosca ou coisa que o valha. Estamos eu, Roberto, o chofer Sebastião, que servia meu pai há anos e anos; o detetive Garcia, que ia muito lá, conversar fiado. Roberto acaba de tomar uma cajuada. Eu não me lembro do contínuo que fo­ra buscar o refresco. É essa a única presença que me falta.
Ouço a voz perguntando, cordial, quase doce: — “Dr. Má­rio Rodrigues está?”. Não ocorreu a nenhum de nós a mais le­ve, tênue, longínqua suspeita de nada. Como desconfiar de uma naturalidade total? O chofer Sebastião respondeu: — “Dr. Má­rio Rodrigues não está”. Nova pergunta: — “E Mário Rodrigues Filho está?”. “Também não”. Continua, perfeita, irretocável, a naturalidade de maneiras e de tudo. Vejo os passos que vão até a sala da frente. É empurrada a porta de vaivém. Ninguém lá. Os passos voltam.
A voz pede (e já um vago sorriso): — “O senhor podia me dar um momento de atenção?”. Roberto está do outro lado da mesa, sentado. Ergue-se: — “Pois não”. Enquanto ele faz a volta, passando por mim e por Sebastião, os passos vão na frente, en­tram pela porta de vaivém. Roberto entra, em seguida. Ele tinha 23 anos. Era pai de duas crianças, Sérgio Roberto e Maria Tereza. Sua mulher estava grávida (e Vera Maria seria a filha póstuma).
Enquanto Roberto caminhava para a sala, eu me dirigia pa­ra a escada. Ia ao café, na esquina da rua do Carmo com Sete de Setembro. Lá dentro, não houve tempo para uma palavra. Roberto levou o tiro ao entrar. Parei com o estampido. E veio, quase ao mesmo tempo, o grito. Não apenas o grito do ferido, mas o grito de quem morre. Não era a dor, era a morte. Ele sa­bia que ia morrer, eu também sabia.
Todos corremos. Na frente, de revólver na mão, ia o dete­tive Garcia. Atrás, Sebastião, eu me lembro, agora me lembro: — um bom crioulo, o Quintino, cego de um olho. Eis o que vi: — Roberto caíra de joelhos; crispava as duas mãos na mão que o ferira. O detetive apontava o revólver. A voz estava di­zendo: — “Vim matar Mário Rodrigues ou um dos filhos”. Sim­plicidade, doçura. Matar Mário Rodrigues ou um dos filhos.
Naqueles cinco, seis minutos, acontecera tudo (e como, nes­ses momentos, a figura do criminoso é secundária, nula. Eu não me lembrei da ira; eu não pensei em também ferir ou em tam­bém matar. Só Roberto existia. Estava ali, deitado, certo, certo de que ia morrer. Pedia só para não ser tocado. Qualquer mo­vimento era uma dor jamais concebida). Vinte e seis de dezem­bro de 1929. Nunca mais me libertei do seu grito. Foi o espan­to de ver e de ouvir, foi esse espanto que os outros não sentiram na carne e na alma. E só eu, um dia, hei de morrer abraça­do ao grito do meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues.

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