segunda-feira, 27 de abril de 2009

Capítulo 21 - A Menina sem Estrela

“Eu te vingo”, soluçou meu pai. Era o último a beijar o meu irmão Roberto. A família toda já se despedira: — os irmãos, as irmãs e minha mãe. Lembro-me de que, de repente, um linotipista se arremessou; e beijou também o jovem morto. Então al­guém veio sussurrar: — “Dr. Mário, pode fechar? O caixão? Pode fechar?”.
Meu pai veio. Não era a primeira vez em que o via choran­do. Quando perdeu uma filhinha de oito meses, Dorinha, tam­bém rebentara em soluços. E houve um momento em que fui até a esquina do largo. Era a rua Inhangá, nos fundos do Copa­cabana Palace. E, de lá, eu ouvia o choro tremendo de meu pai. “Papai chora, também chora”, eis o que eu pensava. Até então, eu não vira um adulto, homem feito, chorando. E me humilhou que os outros meninos vissem meu pai chorando.
Na morte de minha irmã Dorinha, eu tinha oito anos; e quando meu irmão Roberto morreu, já fizera quinze. Agora o choro do meu pai não me humilhava. Eu queria que ele choras­se e cada vez mais alto, mais forte, e que todos vissem Mário Rodrigues chorando. Pedi a Deus que ele se demorasse muito — mais que os outros — beijando meu irmão. E, por fim, disse, cortando o choro: — “Eu te vingo”. Que bem me fez, que bem ainda me faz, a fragilidade ferida do meu pai. Eu o via, ali, tão órfão do próprio filho.
Tenho comigo todas as sucessivas caras do meu pai na noite do velório. Alta madrugada, ele dizia para minha mãe: — “Es­tou com sono. Meu filho morreu. Não posso ter sono”. Toda a cidade vinha abraçá-lo. Era uma procissão espantosa. Lembro-me de Paulo Magalhães. E sempre que aparecia mais um, ele repetia: — “Essa bala era para mim”. Dizia isso, gritava isso. Era verdade. Roberto morrera porque meu pai não estava. Nem meu pai, nem Mário Filho, que também foi procurado. Roberto era o terceiro na ordem de preferência. E se ele não estivesse, seria eu: e se não fosse eu, seria outro irmão, ou irmã, alguém que fos­se filho de Mário Rodrigues, que fosse amor de Mário Rodrigues.
“Eu te vingo, eu te vingo”, era o que estava em mim. Um dos funcionários, se não me engano o gerente Faria Lemos, quis tirar o revólver do meu pai. Todo mundo, ali, achava que meu pai ia acabar metendo uma bala na cabeça. Ele agrediu o fun­cionário e retomou o revólver. Naquele momento, fechavam o caixão. O enterro ia sair. O vice-presidente da República, Me­lo Viana, segurou uma das alças.
Uma babá trouxera, no colo, o filho mais velho de Rober­to, Serginho (o hoje arquiteto Sérgio Rodrigues). Mas preciso falar ainda de alguém. Quando o corpo do meu irmão veio pa­ra a Crítica, eu era talvez o único da família que estava lá. Meu pai, meus irmãos viriam depois. Subi a escada do jornal e, ao entrar na redação, vi aquela senhora de preto, junto do caixão. Chorando, ela estava florindo o corpo de Roberto. Depois, sou­be que fora a primeira a chegar, que chegara antes do caixão; e já trazia não sei se braçadas de rosas ou dálias. Quando insta­laram a câmara-ardente, usara, primeiro, as suas flores e, depois, as outras. Beijara meu irmão; falara a seu ouvido. Quando che­garam minha mãe e minhas irmãs, ela recuou e ficou de longe, como se a simples presença de minha mãe a escorraçasse. Eu não parava; andava de um lado para outro; ia da redação para a oficina; e, quando voltava, eu a via, no seu canto, taciturna, inescrutável, o rosto erguido, os lábios cerrados; sua dor tinha uma dignidade pétrea.
(Meu irmão Roberto, pintor, escultor, ilustrador, era um Rimbaud plástico. E não vi jamais, no romance, no cinema e na vida real, um homem tão bonito. A morte parecia ser a sua utopia, mais doce e mais funda. Roberto punha a própria cara nos amantes, suicidas, enforcados de suas ilustrações. Anos de­pois de sua morte, dizia-me Carmen Miranda: — “Seu irmão era lindo”. Inspirou paixões absurdas.)
A senhora de preto só se aproximava do caixão quando as mulheres da família saíam, por um momento, para o gabinete de meu pai. E vinha ela; deixava correr as lágrimas não choradas; passava a mão no rosto de Roberto. Ainda a vejo pondo uma dália no seu peito como uma estrela. Ela teria seus quaren­ta e não sei quantos anos, beirando os cinqüenta. E nunca a vi­ra, em toda a minha vida, nunca. Mas era uma presença tão for­te, tão obsessiva, que acabei perguntando a um repórter: — “Quem é? Aquela ali. Quem é?”. Naquele exato momento, mi­nha mãe e minha irmã voltavam. A senhora de preto fugiu para o seu canto.
Na sua veemência cochichada, o repórter disse tudo: — “Não conhece? A sem-vergonha da fulana?”. Recuei o rosto co­mo um agredido. O outro continuava, baixo e feroz: — “Fula­na, a caftina!”. Repetiu, na sua impiedade radiante: — “A caftina!”. Segundo o repórter, era dona de pensão de mulheres etc. etc. Disse mais: — “Tão cínica que vem pra cá. Nem respeita”. Eu já sabia; larguei o repórter, que ainda rosnava, e continuei o meu itinerário desesperado, da redação para a oficina, da ofi­cina para a redação.
Tudo o que o repórter me dissera me deixara ressentido contra o idiota. Até hoje, não sei quem era (nunca mais a vi). Mas estava chorando meu irmão; e o beijara. A própria palavra “caftina” era um som leve, tênue, remoto, quase inaudível. E fosse ela, além de caftina, leprosa, ah, poderia roçar os lábios de meu irmão com o seu beijo ferido. Isso aconteceu nos últi­mos dias de 1929; meu irmão caiu — e a bala cravou-se na espinha no dia 26 de dezembro; e morreu, dois dias depois. Portanto, 37 anos me separam de sua morte. A senhora de preto deve estar morta. Mas se estiver viva, velhíssima e viva, eis o que eu queria dizer: — ela foi, na sua ternura furtiva, nas suas flores humilhadas, um momento de bondade desesperadora. A última vez em que a vi foi no cemitério, acompanhando o cai­xão. E imaginei que ela ia ficar, ali, abraçada a um túmulo, eter­namente.

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