quinta-feira, 30 de abril de 2009

Capítulo 24 - A Menina sem Estrela

Não sei se escrevi que eu tinha quinze anos quando Rober­to morreu. Engano, engano. Nasci em 1912, em agosto de 1912. Portanto, em dezembro de 1929 já completara dezessete anos. Dezessete e não quinze. Eis o que eu queria confessar: — o que me dá um certo pânico do adolescente é a minha própria ado­lescência. Eu fora um menino tenso, patético e repito: — um menino que vivia de paroxismo em paroxismo.
Esse o menino, esse o garoto. E o menino e o garoto se transformaram num péssimo adolescente. Aos seis anos de ida­de, ou sete, ou oito, eu teria vivido muito mais a morte, o es­panto da morte. Bem me lembro que, na rua Alegre, guri de calça curta, imaginava: — “Se papai morrer, ou mamãe, ou um irmão, eu me mato”. Pedia a Deus para morrer antes dos outros. Se um de nós tivesse de ficar cego, eu queria ser o cego, ou lepro­so, eu queria ser o leproso.
Eis o que me fascina no menino que fui: — o pequenino sui­cida. E acho lindo, ainda hoje, esse amor pela morte que lateja no fundo de minha infância. Aí está por que não entendo os ve­lhos que, hoje, adulam e chegam a lamber, fisicamente, a juven­tude. Leio, no dr. Alceu, que a juventude é uma das potências da nossa época. Sim, todos querem estar bem com os jovens.
Pelo amor de Deus, não me falem da Guarda Vermelha. Não é jovem, nunca foi jovem. Eis o óbvio ululante, que ninguém quer ver: — a Guarda Vermelha tem exatamente a idade de Mao Tsé-tung. Nada mais senil do que essa massa de adolescentes, a urrar de ódio apócrifo. Eis a palavra: — apócrifo.
Aos seis anos, eu era muito mais eu mesmo do que aos de­zessete. E, por isso, uma das coisas mais vis que conheço é o que escreveu Jean-Paul Sartre sobre a própria infância. Seu li­vro As palavras é a cínica, a hedionda falsificação de um menino. Ou mais do que falsificação. É como se o adulto Sartre es­tuprasse o menino Jean-Paul, num terreno baldio.
Volto aos jovens. Eu os vejo montados, cavalgados por ve­lhos e só por velhos. E suas palavras, seus ódios, seus punhos cerrados, seus palavrões — são apócrifos. (Ao mesmo tempo que falo assim, me dilacero de compaixão pelo adolescente que fui. Mas não me acho, não me sinto, não me reconheço aos dezessete anos. Só voltei a ser eu mesmo quase aos trinta.)
De repente, Roberto piorou. Febre, angústia. Ventre cres­cido. Meu pai estava na redação, otimista, dilacerado de espe­rança, quando teve a notícia. O dr. Castro Araújo apareceu no seu gabinete. Foi vago, mas ainda assim alarmante. Falou numa alteração de temperatura. Sem uma palavra, meu pai apanhou o paletó. Saíram para o pronto-socorro. No caminho, Castro Araújo falou numa nova operação.
Estou vendo Castro Araújo, já de avental, lavando as mãos, os antebraços. Dr. Adayl Figueiredo fizera a primeira interven­ção. Castro Araújo, como médico da família, faria a segunda. Tudo se resumia em colocar o dreno. Mas nem Castro Araújo, nem Adayl Figueiredo, ninguém no hospital acreditava em na­da. A peritonite já se instalara e, naquela época, peritonite era a morte. Presentes, meu pai, minha mãe, meus irmãos.
Vejo uma enfermeira aplicando uma injeção de óleo canforado no braço do meu pai. Minha mãe chorava. E eu, então, febril de insônia, deitei-me numa cama e adormeci. Acordei qua­se ao amanhecer. Sento-me na cama, espantado. Entra meu pai; pergunta a alguém: — “Nelson já sabe que ele morreu?”. Ouço o choro de minha mãe. Meu pai está junto da cama; repetiu, so­luçando: — “Morreu, morreu”.
Deitei-me, novamente; tremia tanto como se todas as malárias estivessem no meu sangue, assanhadíssimas. Eu queria chorar, como os outros; queria soluçar como meu pai. Roberto morrera há horas. Minha mãe levara minha irmã Dulce, a caçula, então com dois meses. E, ainda no hospital, dera de mamar à Dulcinha, cobrindo o seio com um pano.
Um médico veio ver-me; examinou meu pulso. Vira-se pa­ra a enfermeira: — “Óleo canforado”. E todos nós, um por um, tomamos óleo canforado. E eu não chorava. Comecei a pensar numa menina que morrera, de febre amarela, na rua Alegre. Eu era garotinho e ouvia tudo, lá de casa. A mãe da menina se es­ganiçava: — “Minha filha não morreu! Minha filha não morreu!”. Queria bater com a cabeça nas paredes; agredia os que a segu­ravam; e mordeu a cara de uma comadre. Assim varou toda a madrugada e assim a amanheceu: — era um ataque depois do outro. E, na hora de sair o enterro, quis deitar-se no pequenino caixão de anjo.
Eu vira, nos jornais, a fotografia de Souza Filho no necro­tério. Ainda tenho, na cabeça, a sua cara gorda e mais: — vejo também a pulseira de barbante, da qual pendia um cartão com a identidade e o número do cadáver. E essa pulseira, que põem em qualquer morto, como uma desfeita, uma humilhação — essa pulseira me dava cólera cega e inútil. Que fizessem isso com qualquer, morto e não com meu irmão, não com um morto ama­do por mim.
(Quando, ao anoitecer do dia 26, Roberto acordara da anes­tesia, minha mãe estava a seu lado. Ele, ainda meio delirante, arqueja: — “Mamãe, mataram o seu filhinho”. Os dois tinham um idioma só feito de diminutivos. Pouco depois, Roberto pe­dia para ver Dulcinha.)
Mas falei na menina da febre amarela e de sua mãe. Eu que­ria que minha dor tivesse igual demência. Queria estar gritando (e não queria ver Roberto no necrotério, com a pulseira do Souza Filho). Lembro-me da volta para casa. Morávamos na rua Joa­quim Nabuco, 62, se não me engano. Quando saíamos, em vá­rios táxis, estava amanhecendo; e ainda não sumira a última es­trela da noite.
Nunca vi uma manhã de uma beleza tão absurda, de um azul tão frenético, de uma luz tão inconcebível. E era como se a morte de Roberto estivesse abrindo os meus olhos para uma paisagem jamais sonhada. Foi, de repente, quando cheguei em casa, na rua Joaquim Nabuco, que comecei a chorar. Sofria finalmente como um menino, era de novo um menino e me sentia atraves­sado, e tão ferido, pelo grito do meu irmão. Roberto estava mor­to, mas ficara comigo seu grito, para sempre.

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