sexta-feira, 1 de maio de 2009

Capítulo 25 - A Menina sem Estrela

O verdadeiro grito parece falso. Eu me lembro de uma certa manhã, há uns dez anos, ou doze, ou quinze, sei lá. E, súbito, alguém começou a gritar. Grito grosso, quase mugido. Sim, um sujeito mugia, um sujeito fazia uma paródia vacum. Eu batia à máquina e interrompi meu trabalho. E não entendia a moleca­gem, em pleno expediente e numa empresa séria.
Mas eu soube, em seguida, de tudo. Não era alguém imi­tando a dor da carne ferida. Não. Um operário, insone e exaus­to de horas extras, cochilara no serviço; e lá deixara as duas mãos, inocentes e também insones e também exaustas. A gui­lhotina caiu, guilhotina de papel. Foi um golpe só, exato, e tão macio, quase indolor. O rapaz não sentira nada. O grito veio antes da dor; e veio porque ele via os braços sem mãos. Lá esta­vam elas, lado a lado, unidas, como duas amigas, duas gêmeas.
E, depois, o rapaz subiu das oficinas para a gerência. Atrás, vinha um companheiro, carregando, numa almofada de algo­dão, as mãos amputadas. E o desgraçado gemia grosso (e eu con­tinuava com a mesma e absurda sensação de um falso grito, de um falso gemido e de um falso soluço).
Contei o episódio para concluir: — a verdadeira dor repre­senta muito mal. Tem esgares, uivos, patadas, arrancos, modu­lações inconcebíveis. E me lembro das caras, na morte de Ro­berto. A do meu pai, de minha mãe, de minhas irmãs. Eu diria também que a grande dor não se assoa. Eis a verdade: — não se assoa.
Digo isso e penso na minha vizinha, citada por mim não sei quantas vezes. A filha, de cinco anos, morrera de febre ama­rela. Era ainda o Rio dos lampiões e da febre amarela. A menina morreu e, durante meses, a mãe ainda chorava. Eu a vejo no meio de outras vizinhas. E o que me impressionou, a mim, ga­roto, era a coriza, o pranto nasal. De vez em quando, alguém oferecia um lenço, que ela repelia, furiosa. Nunca se assoou, nun­ca, como se enxugar a coriza fosse uma desfeita à pequenina morta.
Não vi meu pai usar o lenço. O soluço do gráfico — sim, do gráfico sem mãos — lembrou-me o choro do meu pai. E, agora, estou pensando em mim mesmo. Vejo a família entran­do em casa. Subimos todos para o quarto de meu pai. Eu pensava: — “Não quero que me falem da autópsia”.
Autópsia. Eu vivera uma experiência de reportagem poli­cial. E sabia do martírio de um cadáver, no necrotério. Velhos, moços, meninas, mocinhas, garotos são espantosamente despi­dos. Ficam tão nus. Nas minhas memórias falo muito da nudez humilhada. Citei a demente da rua Alegre, citei Marilyn Monroe. Mas não há nudez mais humilhada, mais ofendida, mais res­sentida do que a da autópsia. Ah, meu Deus, os nus violados do necrotério.
Também vira, nas fotografias dos jornais (O Globo, A Noi­te), Souza Filho na mesa do necrotério. Não era mais o político, o deputado, o importante. Era apenas e tão-somente o cadáver numerado. E me subia, de negras entranhas, uma náusea cruel contra a burocracia hedionda que despe os mortos e exige a au­tópsia. Fui, ao meio-dia, meio-dia e pouco, para a Crítica.
Eu precisava chorar e pensava: — “Chego lá e choro”. E estava disposto a não ouvir uma palavra sobre a autópsia. Na porta, vejo um grupo de funcionários do jornal e, no meio, um repórter de polícia. Estava excitado, o olho rútilo. Alguém me trava o braço e sussurra: — “Meus pêsames”. E o repórter esta­va dizendo, enquanto os outros ouviam: — “Não puderam ti­rar a bala. Tiveram que serrar a espinha”.
Deu-me um ódio cego, uma vontade de partir a boca que dizia aquilo. E, então, vim subindo os degraus. Era uma escada antiga, que velhas gerações tinham gasto. No meio, paro; encosto-me ao corrimão. Mãos batem-me nas costas: vozes es­tão dizendo: — “Meu sentimento”, “Meus pêsames”. Um ve­lho pára. Abraçou-me: — “O nosso Roberto”. E eu só pensava na nudez crucificada da autópsia.
O repórter vira tudo. Conhecia o médico-legista e cada fun­cionário do necrotério. Não saía de lá; e, mesmo em dia de fol­ga comparecia, por hábito e prazer de estar com os defuntos desconhecidos. Momentos depois, passei por ele. Dizia a um outro: — “Serraram a espinha”. Fugi.
Hoje, a dor não justifica nem uma gravata preta. Ninguém põe luto. Ainda outro dia, eu ouvia uma mocinha: — “O senti­mento não está na cor”. Está. O sentimento está, sim, no terno chegado da tinturaria. E no vestido negro. Em 1929, minha fa­mília vestiu-se pesadamente de luto. Meu pai, minha mãe, to­dos os meus irmãos. Cheguei a pensar em nunca mais tirar o luto, nunca mais.
Quatro ou cinco dias depois da morte de Roberto, eu ia para a redação. E, lá, apanhava a coleção de jornais. Queria ler tudo que saíra sobre a morte de Souza Filho. Fora também assassina­do, quase na mesma hora. Eu revia a sua fotografia no necroté­rio. Ficava olhando a cara gorda, com as pessoas em torno, po­sando. As manchetes, os títulos, todo o noticiário — davam-me uma satisfação maligna. Souza Filho também andara no necro­tério.
Comecei também a ler anúncios de missas. Abria um jor­nal e ia, direto, aos avisos fúnebres. Não se morria só na nossa família. Roberto estava no São João Batista; mas os outros es­tariam lá, mais cedo ou mais tarde. Sim, outros continuavam morrendo; a toda hora e em todos os idiomas, alguém morria. E os anúncios de missa eram, para mim, uma espécie de repa­ração.
Três anos depois, descobri o teatro. De repente, descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante os três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espec­tador não ria: — eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas, no segundo ato, eu já acha­va que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: — tea­tro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no inter­valo do segundo para o último, eu imaginei uma igreja. De re-pente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os co­roinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville, eu levava comigo todo um projeto dramático definitivo. Acabava de to­car o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: — a peça para rir, com essa destinação específi­ca, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica.

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