E eis que, na terça-feira, pela manhã, dobro a esquina e quase esbarro com a d. Odete. Com esse nome de Zona Norte, é minha vizinha em Ipanema. D. Odete não me via desde o desabamento. Imagino: — “Vai me dar os pêsames”. E ai de mim. Quando sinto que alguém vai me dar os pêsames, tenho vontade de correr e repito: — correr, fisicamente, com todas as potências do meu pânico. (E, ao mesmo tempo, gosto, desejo, preciso de uma compaixão unânime e total. Por isso, não passo um dia sem ver minha mãe. Ela ainda não sabe que os dois estão mortos: — Mário Filho Paulinho.)
Falo em “dois” mortos e tenho uma brusca vergonha de ter, por um momento, esquecido Maria Natália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Mas como dizia, entre parênteses, minha mãe tem pena de nós. Seu amor é uma pena sem fim. Tem para mim um olhar compassivo, como se eu fosse um contínuo e ela precisasse me compensar de velhas e santas humilhações. Mas disse que minha mãe não sabe e já me vem uma dúvida. Talvez saiba e, por compaixão, pena de nós, simule uma inocência desesperadora. Nunca mais perguntou por Mário, Paulinho, nem pelos dois netos, nem pela nora. Só outro dia é que, de repente, suspirou: — “Eu quero aquele vestido preto”. Há um suspense na família. Uma das filhas ralha, alegremente: — Mas vestido preto é feio, é triste, mamãe”. Ela tomou um ar meio alado e ninguém entendeu aquela nostalgia do luto. E foi só.
Volto a d. Odete. Estava disposto a não vê-la e passar adiante. Mas ela me trava, solidamente. Sua mão, voraz, está crispada no meu braço. Paciência. Vai me dar os pêsames (na Zona Norte, para lá da praça Saenz Peña, há várias Odetes). Perfilo-me diante da vizinha. Mas ela não me dá os pêsames. Diz e, até, com certa satisfação: — “Ontem, eu vi o senhor com a cabra”. Recebo um baque. Logo, porém, baixa uma luz em mim. Tinham posto, no ar, em “Noite de Gala”, o meu video tape, com o governador Negrão de Lima, o terreno baldio e a cabra.
Desatinado, começo a perguntar: — “Mas avisaram, hein, d. Odete? Avisaram que o programa foi gravado antes das chuvas?”. Negou com a cabeça, ao mesmo tempo que respondia com uma dessas certezas radiantes: — “Em absoluto! Ninguém avisou nada!”. Repeti, numa fúria: — “Mas eu gravei antes das chuvas! Foi antes das chuvas, d. Odete!”. Ela suspirou: — “Pois é, pois é!”. Eu, em pé, na calçada, pensava no programa, no seu décor, nas suas figuras. A cabra é tão antiga como o homem e talvez anterior ao homem. Posta no vídeo, ela se impõe como uma imagem forte, obsessiva, ornamental.
Ainda por cima, o bicho passa 24 horas sem comer; quando entra em cena, não faz outra coisa senão devorar capim, isto é, senão mastigar a paisagem. Esse humor atroz deve ter sido quase uma agressão para o telespectador. Ninguém entendia que eu, em plena tragédia, fosse para o vídeo dizer piadas. Largo d. Odete e saio, como um possesso. Pouco depois, encontro o Vieira, de O Globo. Sussurrou-me: — “A tua entrevista com o Negrão estava um troço!”. Mais adiante, um outro pisca-me o olho, com uma malícia torpe: — “Terreno baldio, hein?”. No mesmo dia e no dia seguinte, por toda parte, falavam. E eu, como o réu de toda uma cidade, respondia: — “Gravei antes das chuvas! Antes das chuvas!”.
Até que, de repente, paro e pergunto, de mim para mim: — “Mas que é isso, meu Deus, que é isso?”. As coisas começaram a ficar bem claras. Eu fora colhido por um surto de pusilanimidade feroz. Era o medo puro, o medo abjeto, do que pudessem pensar ou dizer de mim. Por que explicar, por que justificar, se o que importa é sofrer, apenas isso, sofrer? A estação não datou o programa? Melhor. Não importa a minha inocência. O que importa é que Paulinho morreu e que minha mãe queria pôr um vestido preto.
Minha vida está agora dividida em dois tempos: — “antes das chuvas” e “depois das chuvas”. É um corte tão fundo, e tão violento, e tão sem piedade. Quando digo “antes das chuvas” estou falando de um outro mundo, de outro idioma, de outra encarnação e, mesmo, de outras chuvas. Tanta coisa morreu com o desabamento. Inclusive eu próprio. Não pensem que não morri também. Como poderia eu brotar, intacto, da catástrofe? Naquele domingo, estava na minha casa, longe e protegido ouvindo e vendo Johnny Halliday contaminar a cidade com o seu erotismo ululante.
Agora me lembro: — não era somente Johnny Halliday. Também me preocupava a resenha esportiva dominical. Toda a cidade tremia de clarões. E eu queria comparecer ao programa. Mas Lúcia teimava: — “Não vai! Não pode ir!”. Telefonei para o José Maria Scassa e o colega respondeu: — “O negócio aqui está preto. O Jóquei tem metro e meio de água. Estou preso, ilhado”. Em Santo Amaro, Luiz Alberto era outro acuado. Augusto Melo Pinto, o produtor da resenha, fora jogar nos cavalos e naufragara no prado. No fundo, no fundo, estávamos achando uma graça infinita nas águas. Por fim, uma moça da Globo deu a última palavra: — “Não vai haver resenha”.
Enquanto me divertia com as chuvas, Paulinho estava morrendo. Pois algo de mim também foi sepultado em lama, pedra e vento. Sou outro “depois das chuvas”. E me admira que eu tenha mudado e os outros, não. As pessoas continuam indo à praia; meninas tomam grapete de biquíni. Uma catástrofe eufórica como a de Laranjeiras realmente não influiu na cor de uma gravata. O homem esquece antes de sofrer. Agora mesmo, tenho diante de mim um recorte de jornal. É a croniqueta do poeta Drummond, sobre o desabamento. Já vasculhei o papel impresso, já o apalpei, já o farejei, já o virei de pernas para o ar.
E o papel não diz nada. Mas como? O nosso poeta nacional escreve sobre a tragédia e não consegue dizer nada? Aí está dito tudo: — nada. Aliás, tudo, no seu escrito, está errado. Preliminarmente, uma catástrofe exige, para os seus largos movimentos, exige espaço, exige extensão. E a crônica miúda é um gênero próprio para o furto de galinhas. Duzentas mortes pedem a abundância de Jorge de Lima da “Invenção de Orfeu”. Ora, o poeta teria de dizer, em meia dúzia de linhas, verdades jamais concebidas. Não disse. E há, no meio da crônica, quase no fim, um alusão, de passagem, a Paulo Rodrigues.
Os dois se conheciam; Paulinho tremia de admiração pelo poeta; dedicou-lhe seu último livro, O sétimo dia. E Drummond faz-lhe a concessão de uma frase e repito: — Drummond pinga uma frase, e não mais, sobre os cinco corpos cravados na pedra. Gilberto Amado vem de longe e desembarca aqui, ferido de espanto. Sua primeira palavra é para Paulo Rodrigues, que ele “carregara no colo”. E o poeta Drummond? Pôs, numa frase escassa, toda a aridez de três desertos.
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