segunda-feira, 13 de abril de 2009

Capítulo 7 - A Menina sem Estrela

E eis que, na terça-feira, pela manhã, dobro a esquina e qua­se esbarro com a d. Odete. Com esse nome de Zona Norte, é minha vizinha em Ipanema. D. Odete não me via desde o desa­bamento. Imagino: — “Vai me dar os pêsames”. E ai de mim. Quando sinto que alguém vai me dar os pêsames, tenho vonta­de de correr e repito: — correr, fisicamente, com todas as po­tências do meu pânico. (E, ao mesmo tempo, gosto, desejo, pre­ciso de uma compaixão unânime e total. Por isso, não passo um dia sem ver minha mãe. Ela ainda não sabe que os dois estão mortos: — Mário Filho Paulinho.)
Falo em “dois” mortos e tenho uma brusca vergonha de ter, por um momento, esquecido Maria Natália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Mas como dizia, entre parênteses, minha mãe tem pena de nós. Seu amor é uma pena sem fim. Tem para mim um olhar compassivo, como se eu fosse um contínuo e ela precisasse me compensar de velhas e santas humilhações. Mas disse que minha mãe não sabe e já me vem uma dúvida. Talvez saiba e, por compaixão, pena de nós, simule uma ino­cência desesperadora. Nunca mais perguntou por Mário, Pauli­nho, nem pelos dois netos, nem pela nora. Só outro dia é que, de repente, suspirou: — “Eu quero aquele vestido preto”. Há um suspense na família. Uma das filhas ralha, alegremente: — Mas vestido preto é feio, é triste, mamãe”. Ela tomou um ar meio alado e ninguém entendeu aquela nostalgia do luto. E foi só.
Volto a d. Odete. Estava disposto a não vê-la e passar adian­te. Mas ela me trava, solidamente. Sua mão, voraz, está crispa­da no meu braço. Paciência. Vai me dar os pêsames (na Zona Norte, para lá da praça Saenz Peña, há várias Odetes). Perfilo-me diante da vizinha. Mas ela não me dá os pêsames. Diz e, até, com certa satisfação: — “Ontem, eu vi o senhor com a cabra”. Recebo um baque. Logo, porém, baixa uma luz em mim. Ti­nham posto, no ar, em “Noite de Gala”, o meu video tape, com o governador Negrão de Lima, o terreno baldio e a cabra.
Desatinado, começo a perguntar: — “Mas avisaram, hein, d. Odete? Avisaram que o programa foi gravado antes das chu­vas?”. Negou com a cabeça, ao mesmo tempo que respondia com uma dessas certezas radiantes: — “Em absoluto! Ninguém avisou nada!”. Repeti, numa fúria: — “Mas eu gravei antes das chuvas! Foi antes das chuvas, d. Odete!”. Ela suspirou: — “Pois é, pois é!”. Eu, em pé, na calçada, pensava no programa, no seu décor, nas suas figuras. A cabra é tão antiga como o homem e talvez anterior ao homem. Posta no vídeo, ela se impõe como uma imagem forte, obsessiva, ornamental.
Ainda por cima, o bicho passa 24 horas sem comer; quan­do entra em cena, não faz outra coisa senão devorar capim, is­to é, senão mastigar a paisagem. Esse humor atroz deve ter sido quase uma agressão para o telespectador. Ninguém entendia que eu, em plena tragédia, fosse para o vídeo dizer piadas. Largo d. Odete e saio, como um possesso. Pouco depois, encontro o Vieira, de O Globo. Sussurrou-me: — “A tua entrevista com o Negrão estava um troço!”. Mais adiante, um outro pisca-me o olho, com uma malícia torpe: — “Terreno baldio, hein?”. No mesmo dia e no dia seguinte, por toda parte, falavam. E eu, co­mo o réu de toda uma cidade, respondia: — “Gravei antes das chuvas! Antes das chuvas!”.
Até que, de repente, paro e pergunto, de mim para mim: — “Mas que é isso, meu Deus, que é isso?”. As coisas começa­ram a ficar bem claras. Eu fora colhido por um surto de pusilanimidade feroz. Era o medo puro, o medo abjeto, do que pudessem pensar ou dizer de mim. Por que explicar, por que jus­tificar, se o que importa é sofrer, apenas isso, sofrer? A estação não datou o programa? Melhor. Não importa a minha inocên­cia. O que importa é que Paulinho morreu e que minha mãe queria pôr um vestido preto.
Minha vida está agora dividida em dois tempos: — “antes das chuvas” e “depois das chuvas”. É um corte tão fundo, e tão violento, e tão sem piedade. Quando digo “antes das chuvas” estou falando de um outro mundo, de outro idioma, de outra encarnação e, mesmo, de outras chuvas. Tanta coisa mor­reu com o desabamento. Inclusive eu próprio. Não pensem que não morri também. Como poderia eu brotar, intacto, da catás­trofe? Naquele domingo, estava na minha casa, longe e protegi­do ouvindo e vendo Johnny Halliday contaminar a cidade com o seu erotismo ululante.
Agora me lembro: — não era somente Johnny Halliday. Também me preocupava a resenha esportiva dominical. Toda a cidade tremia de clarões. E eu queria comparecer ao progra­ma. Mas Lúcia teimava: — “Não vai! Não pode ir!”. Telefonei para o José Maria Scassa e o colega respondeu: — “O negócio aqui está preto. O Jóquei tem metro e meio de água. Estou pre­so, ilhado”. Em Santo Amaro, Luiz Alberto era outro acuado. Augusto Melo Pinto, o produtor da resenha, fora jogar nos ca­valos e naufragara no prado. No fundo, no fundo, estávamos achando uma graça infinita nas águas. Por fim, uma moça da Globo deu a última palavra: — “Não vai haver resenha”.
Enquanto me divertia com as chuvas, Paulinho estava mor­rendo. Pois algo de mim também foi sepultado em lama, pedra e vento. Sou outro “depois das chuvas”. E me admira que eu tenha mudado e os outros, não. As pessoas continuam indo à praia; meninas tomam grapete de biquíni. Uma catástrofe eufó­rica como a de Laranjeiras realmente não influiu na cor de uma gravata. O homem esquece antes de sofrer. Agora mesmo, te­nho diante de mim um recorte de jornal. É a croniqueta do poeta Drummond, sobre o desabamento. Já vasculhei o papel impres­so, já o apalpei, já o farejei, já o virei de pernas para o ar.
E o papel não diz nada. Mas como? O nosso poeta nacional escreve sobre a tragédia e não consegue dizer nada? Aí está di­to tudo: — nada. Aliás, tudo, no seu escrito, está errado. Preli­minarmente, uma catástrofe exige, para os seus largos movimen­tos, exige espaço, exige extensão. E a crônica miúda é um gê­nero próprio para o furto de galinhas. Duzentas mortes pedem a abundância de Jorge de Lima da “Invenção de Orfeu”. Ora, o poeta teria de dizer, em meia dúzia de linhas, verdades jamais concebidas. Não disse. E há, no meio da crônica, quase no fim, um alusão, de passagem, a Paulo Rodrigues.
Os dois se conheciam; Paulinho tremia de admiração pelo poeta; dedicou-lhe seu último livro, O sétimo dia. E Drummond faz-lhe a concessão de uma frase e repito: — Drummond pinga uma frase, e não mais, sobre os cinco corpos cravados na pe­dra. Gilberto Amado vem de longe e desembarca aqui, ferido de espanto. Sua primeira palavra é para Paulo Rodrigues, que ele “carregara no colo”. E o poeta Drummond? Pôs, numa fra­se escassa, toda a aridez de três desertos.

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