domingo, 12 de abril de 2009

Capítulo 6 - A Menina sem Estrela

Quando meu irmão Mário Filho morreu, escrevi que a morte é anterior a si mesma. Ela começa muito antes, é toda uma lumi­nosa e paciente elaboração. Nos seus últimos dias, Mário Filho teve a lucidez, a sabedoria, a chama de quem vai morrer. Não vi no seu rosto, no seu último rosto, nenhum espanto, nenhum medo, nenhum ressentimento. Rosto tão doce, tão compassivo, tão irmão. Parecia uma morte consentida, quase desejada.
Mas vi meu irmão Mário e não vi meu irmão Paulo. Nem Maria Natália, nem Ana Maria, nem Paulo Roberto, nem d. Ma­rina. O que me pergunto é se também Paulinho, sua mulher, seus filhos, sua sogra — começaram a morrer antes. E só peço que nem meu irmão, nem meus sobrinhos, nem minha cunha­da tenham percebido nada. Imagino uma morte compassiva, sem tempo para o medo e para o grito. Mas o pior é que Maria Natá­lia percebeu, sim, e gritou.
Tudo começou no domingo. Eu e Lúcia, em nossa casa, li­gamos no Johnny Halliday; Paulinho, na dele, com toda a famí­lia, ouvia o mesmíssimo Johnny Halliday. Já na véspera e por todo o domingo, a terra deslizara por debaixo da pedra. Era a morte e ninguém sabia. João, amigo do meu sobrinho Paulo Ro­berto, estava lá. E Maria Natália fazia anos (tinha ódio da data). João fora buscar Paulo Roberto para um cinema. Eu, em casa, via o cantor arrancar a camisa e, seminu, atirá-la na platéia, num rompante erótico.
O que houve, em seguida, foi tremendo. No vídeo, estava o dorso, lustroso e crispado. E, embaixo, na platéia, correrias, atropelos, uivos. Cabeludos e meninas cavalgavam as cadeiras. A camisa foi possuída, violentada, estraçalhada. Na rua Cristóvão Barcelos, Paulo Roberto preferia Johnny Halliday (o cantor era a morte), preferia Johnny Halliday ao cinema. E, então, a pedra se desprende. Ia levar, de roldão, uma casa, o edifício se­guinte e, por fim, o de Paulinho. Maria Natália empurra o João: — “Corre, que a casa está caindo!”. O menino correu. Veio pe­la escada, enquanto o mundo desabava. Diz ele que ouviu, ain­da, o grito de Ana Maria. Mas por que seria o grito de Ana Maria e não um grito sem dono, desgarrado, perdido?
Na minha casa, bate o telefone. Lúcia atende. Está falando e eu pergunto: — “Quem é?”. Ela tapa o fone: — “Papai”. Men­tira. Era minha irmã, desvairada: — “Desabou o edifício de Pau­linho”. Lúcia sai do telefone; mente: — “Lá de casa. Papai che­gou de Petrópolis”. Depois, o telefone não parou mais e só ela atendia. Continua mentindo com medo do meu coração. Até que um amigo, o dr. Silva Borges, telefona, avisando: — “A Con­tinental deu que Paulo está no Souza Aguiar”. Só então minha mulher começou a dizer a verdade. Repetia, desatinada: — “Se está no Souza Aguiar, está vivo”.
Eu, Lúcia, meus filhos Joffre e Nelsinho, meus irmãos Au­gusto, Helena, Stella varamos a noite, de hospital em hospital. No Souza Aguiar, nada. De O Globo vieram Carlos Tavares, Me­nezes, Ricardo Serran, Carlos Alberto. Meu primo Augusto Ro­drigues e meu cunhado Francisco Torturra foram para General Glicério; e, lá, fizeram uma vigília de lama, pedra e vento. Eu só pensava em Paulinho, eis a verdade, só pensava em Pauli­nho. Ao meu lado, Mário Júlio Rodrigues só pensava em Paulinho (e os primeiros mortos vinham esculpidos em lama). No meio da madrugada é que, de repente, eu percebo tudo: se morressem a mulher, os filhos, se morresse toda a família ele não sobreviveria. Era uma estrutura doce e tão frágil. E havia entre ele e Maria Natália uma paixão de Pedro, o Cru, por Inês de Castro; e do casal pelos filhos um amor de loucura. Penso também em d. Marina, mãe e avó, que os seguia, trêmula de amor, como uma fanática.
Na segunda-feira, veio a notícia: — reconhecidos Maria Na­tália, Ana Maria, Paulo Roberto e d. Marina. Paulinho não fora ainda encontrado. Eu o imaginei vivo, por um milagre, vivo. Mas, quando visse os outros mortos, não tardaria a raiar para ele ou a estrela dos loucos ou a estrela dos suicidas.
O espantoso é que, desde o desabamento, eu me encon­tro a toda hora, com minha infância. Meus pais ainda moravam em Aldeia Campista, quando dois namorados se mataram no Alto da Tijuca, perto da Cascatinha. Daí para o jornal de modinhas foi um pulo. Três ou quatro dias depois, o pacto de morte ti­nha o seu verso, a sua rima, o seu canto. Eis o que eu queria dizer: — vem, de minha infância, o deslumbramento por todos os que se juntam para morrer.
Cada um de nós morre só, tão só, tão sem ninguém. E meu irmão Paulinho, sua mulher, seus filhos (e d. Marina) parecem unidos numa morte consentida e desejada. Sim, como os na­morados de velhas gerações. Mas eu falo em “irmão” e não é bem a verdade. Ou por outra: — seria convencionalmente ir­mão e, por sentimento, filho. Todos nós, seus irmãos mais ve­lhos, amávamos Paulinho como a um filho e pior: — como a um filho caçula. Por isso é que a sua morte nos fere, e tão fun­do, na carne e na alma.
Na madrugada de segunda para terça-feira, acharam seu cor­po. Graças, graças, iam ser enterrados juntos. Às nove da manhã estava eu na Capela Real Grandeza. Alguém veio me sussurrar: — “Ainda não chegaram”. Colocam as primeiras coroas nos cavaletes. Houve um instante em que me deu um ódio negro e cego contra o bar da capela, instalado no andar de cima. É um balcão que serve tudo, coca-cola, guaraná, grapete, sanduíche e cafezinho. A dor tem, ao fundo, um alarido de xícaras e de pires.
Enquanto os cinco caixões não chegam, penso que há en­tre mim e Paulinho não sei quantas coisas entrelaçadas. Naque­le momento, descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. E como me doía não ter dito a ele tudo, não ter feito as confissões extremas.
Eu percebia, ali, que nós olhamos tão pouco as pessoas ama­das. Quantas palavras calei com pudor de ser meigo, vergonha de parecer piegas? Agora mesmo eu não chorava como queria. Meu Deus, por que havemos de sofrer como Rilke?
Eu queria falar, falar sobre meu irmão. O que me fascinava em Paulo Rodrigues era sua luminosa, ardente humildade. Essa humildade foi, primeiro, uma qualidade vital e, depois, uma vir­tude literária.
Tenho, na cabeça, quase tudo que ele escreveu. Foi talvez por humildade que, nos primeiros escritos jornalísticos, preferiu usar fatos miúdos, quase imperceptíveis. Num instante, per­cebemos que era o grande poeta da ocorrência menor, o esti­lista do fato insignificante. Deixava de lado as tragédias óbvias e enfáticas para trabalhar no lixo do noticiário. E como sabia ver, num vago incidente de tráfego, todo o mistério e dramatismo das coisas.
Está na sua obra romanesca o delicado, o incomparável vir­tuosismo com que sempre recriou as miudezas da crônica poli­cial. Vejam o seu último livro, O sétimo dia, que é uma exata, inapelável obra-prima. A rua, a esquina, o boteco, o pau-d’água, tudo tem para ele um apelo encantado. Seus vagabundos são de uma formidável tensão dionisíaca. Sabia, como nenhum ou­tro, dar ao miserável uma dimensão insuspeitada e fremente. O leitor ou crítico pode selecionar, nos seus escritos, uma an­tologia de pulhas magistrais.
Eu me lembro da nota que fez sobre o episódio da cusparada. Com uma meia dúzia de linhas, transmitiu ao incidente uma tremenda força lírica. Eis o fato: — um cidadão, que ia nu­ma Mercedes-Benz, teve vontade de cuspir. Verifica, porém, que alguém o olha, no táxi, ao lado. Deu-lhe uma espécie de escrú­pulo, cerimônia, pudor ou sei lá. E resolveu esperar das duas uma: — ou que a Mercedes ultrapassasse o táxi ou que este ul­trapasse a Mercedes. Nem uma coisa, nem outra. Os dois carros corriam juntos e juntos param no mesmo sinal. O passageiro do táxi não tira os olhos. O outro imagina: “Sabe que eu vou cuspir”. E pergunta, de si para si: — “Cuspo ou não cuspo?”. Entupido de saliva, rala-se de uma ira homicida e impotente. A coisa podia acabar em tapa, tiro, talvez em morte.
Paulo Rodrigues fez, com o episódio de tráfego, uma pági­na inesquecível, de uma qualidade machadiana. Eu disse Macha­do e já penso em Drummond. O “Caso da cusparada” tem a densidade do “Caso do vestido”.
Às onze horas de terça-feira, chegam os cinco caixões. De­cidimos que não seriam abertos. Eu os vi passando, carregados. E, então, imaginei que ninguém é mais importante, para nós, do que os mortos esculpidos na memória da família.

Nenhum comentário: