terça-feira, 14 de abril de 2009

Capítulo 8 - A Menina sem Estrela

Já falei da louca, filha da lavadeira. Foi a primeira mulher nua que vi na minha infância. E, ainda agora, ao bater estas no­tas, tenho a cena diante de mim. Eu me vejo, pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez. Empurro a porta e olho. O espantoso é que sinto uma relação direta e atual entre mim e o fato, como se a memória não fosse a intermediária. A de­mente tem a tensão e o cheiro da presença viva. Mas como ia dizendo: — no fundo, encostada à parede, está a nudez acuada.
Eu já vira meninas nuas, de três, quatro, cinco anos. Mas a filha da lavadeira era uma mulher feita. Estou espiando; a doi­da me olha também, estrábica de medo. O corpo parado. Mas eis que se torce e destorce, numa súbita danação. A última ima­gem que fica em mim, cravada em mim, é de uma nudez que se enrosca em si mesma. Fujo, então, apavorado.
E o estranho é que nunca, nunca, abri a boca para contar esse episódio de infância. Ninguém sabia. Eu jamais disse a um irmão, a um amigo, a ninguém: — “Aos seis anos de idade, vi uma doida nua”. E como a moça não falava — era louca e muda também ela não trairia o segredo inútil. Eis como, através das gerações, ninguém desconfiou, ninguém. Aos 54 anos de idade, começo as minhas memórias e decido: —”Vou contar”. Feita a confidencia, senti uma espécie de paz, tardia, mas reparadora.
Ela morreu há muito tempo. Uma demente e, ainda mais, fi­lha de lavadeira (e viúva) morre mais que os outros. E essa nudez, entrevista por um garoto, é talvez o único vestígio de sua passa­gem terrena. Não deixou um nome, um rosto, um gesto, um grito, e apenas, e para sempre, essa nudez acuada no fundo do quar­to. Um ano depois, vi a segunda mulher nua de minha vida.
Estamos, ainda, na rua Alegre, na mesmíssima Aldeia Campista. No fundo, à esquerda da minha casa, numa colina, o Ins­tituto João Alfredo; mais longe, em Maxwell, a chaminé da Fá­brica Confiança. Tudo aconteceu nas imediações do Carnaval. A cidade estava incendiada de batalhas de confetes. E houve uma na praça Saenz Peña. O Carnaval era, então, um alto aconteci­mento erótico. Hoje, não. Hoje, com a nudez indiscriminada e frenética, os jogos do sexo não ardem mais. O último Carna­val foi de uma aridez desesperadora na sua castidade absurda. Nunca a mulher foi tão pouco desejada.
Na minha infância, todos os nus estavam vestidos. Bem me lembro dos dominós, das caveiras, dos pierrots. O pudor não fazia concessão. E, uma noite, lá fomos nós, eu e outros meninos, leva­dos por senhoras vizinhas. A praça Saenz Peña era uma beleza to­tal. Em cima do meio-fio, eu olhava o lerdo escoamento do corso. Os carros abertos passavam, com meninas na capota, nos pára-lamas. E, súbito, ouviu-se um silêncio ensurdecedor. Lá adiante, vi­nha outro carro aberto, e dentro dele, em pé, uma odalisca.
Podia ser vinte vezes odalisca e não teria importância. O pior é que havia uma abertura na fantasia, por onde irrompia o cavo e deslavado umbigo. Eu falei em “nudez” e já retifico. Era uma modesta nesga de carne, insinuada no decote abdominal. Mas esse umbigo revelado era pior do que a nudez absoluta.
Poderão objetar que eu tivera, com a filha da lavadeira, uma experiência anterior. Mas aí é que está: — não me lembrava, ho­nestamente, não me lembrava do umbigo. Ou por outra: — o umbigo da demente se diluía na nudez geral. E, além disso, nin­guém sabia, ninguém. Ao passo que, ali, era o impudor público e radiante, era o escândalo insolente, glorioso. Repito: — para mim, foi uma agressão pior que a nudez da louca.
As vizinhas cochichavam entre si: — “Sem-vergonha! In­decente!”. O carro já ia longe, levando, em triunfo, o insuportá­vel umbigo. E, ao meu lado, as vizinhas ainda cacarejavam. Co­mo era ressentido, furibundo, o pudor daquelas senhoras gordas, honestíssimas e cheias de varizes. Fui puxado, quase rapta­do: — “Vamos embora! Vamos embora!”. Nos dias subseqüen­tes, não se falou em outra coisa, na rua. “Mas não é possível!”, diziam. Eu ia para o fundo do quintal e, lá, sozinho, ficava so­nhando. O umbigo tinha qualquer coisa de irreal. E essa nesga de carne, vista, entrevista num segundo fulminante, comoveu e marcou toda a minha infância.
Até que, uns três meses depois, uma vizinha entra em casa, com uma furiosa dispnéia emocional. Lembro-me de que a san­ta senhora tinha, no cangote, uma constelação de brotoejas. Ho­je as brotoejas atacam mais as crianças de colo. No meu tem­po floriam, de preferência, nas vizinhas obesas e machadianas. Ela entra e arqueja: — “Descobri a sem-vergonha!”. Não se per­guntou que sem-vergonha. Todos, em casa, inclusive eu, per­cebemos que era a odalisca e só podia ser a odalisca.
E, realmente, não me lembro se a própria vizinha, ou o ma­rido, ou sei lá, localizara no tempo e no espaço a abominável se­nhora. Eu não saberia reconhecê-la, jamais. Para mim, a “sem-ver­gonha” não era uma pessoa, uma cara, um corpo, nem mesmo uma odalisca: — era apenas e só o umbigo. (Esquecia-me de um dado fundamental: — a fulana podia ter usado uma máscara ou, digamos, uma meia-máscara. Mas não. Fez questão do rosto nu.) A vizinha sabia de tudo. A odalisca morava na rua Pereira Nunes, e pior: — estava se mudando para a rua D. Zulmira. Alguém faz a pergunta pânica: — “Rua D. Zulmira?”. Confirmado: — “Rua D. Zulmira”. A dois passos, portanto, lá de casa.
Era um novo escândalo, um novo ultraje, essa vizinhança. Mais uma semana, dez dias, e, finalmente, vi a própria. Ela mudara-se para um sobrado e apareceu na sacada, num fim de tarde. Eu ia passando e vi. Meu pequeno coração dava arran­cos. Olhou para mim ou nem sei se olhou. Sorriu, talvez, sei lá. Comecei a correr, num deslumbramento atroz.
Ah, esquecia-me de dizer: — eu era um pequenino Werther. Minha infância está varada de paixões funestas. E quando gostava — e quase sempre de senhoras de trinta, ou mais, e casadíssimas —, quando gostava sonhava com a morte. Queria morrer de amor e por amor. Assim seria velado, florido e, tal­vez, beijado pelas bem-amadas. Só de vê-la, tão loura (era lou­ra) na sacada, eu me tomei de tamanho amor.
Dias depois, outra vizinha entra em casa e também dispnéica. Chega e solta a notícia triunfal: — a odalisca traía o mari­do. Entre parênteses, eu já o conhecia. Não tinha um único es­casso fio de cabelo. Era só testa, uma testa que começava na frente e ia terminar cá atrás, no cangote.
Contarei, no capítulo seguinte, tudo o que aconteceu com a minha primeira paixão. Ali, eu estava conhecendo a mais an­tiga das figuras femininas: — a adúltera.

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