quarta-feira, 15 de abril de 2009

Capítulo 9 - A Menina sem Estrela

Já era loura, louríssima, na batalha de confete. Mas só me lembrava do umbigo, tudo era umbigo, um umbigo irreal, fan­tasiado de odalisca. Era como se o carro aberto não levasse mais ninguém, nem chofer, só ela, Mas, agora, eu a via de perto, e tão loura, sardas no rosto e pele de tordilha. Isso mesmo: — tordilha. No dia seguinte, passou por mim, juntinho de mim, olhou, sorriu e passou adiante.
Dois ou três dias depois, conheci o marido. Era terrível de ver a sua testa obsessiva, total, que vinha pela cara e a substi­tuía; e, depois, subia pela cabeça, e só parava cá atrás, na nuca poderosa, vacum. Mais tarde, vi um Buda no Eu Sei Tudo e o achei parecidíssimo com o fulano. O que me tortura, ainda ho­je, é que ele continua sendo uma testa e não cara, e não um olho, e não um nariz. (E como uma testa podia ser o Buda do Eu Sei Tudo?) Muitos e muitos anos depois, abro uma revista recentíssima e vejo Sophia Loren em página inteira. Todo me ilumino, numa certeza radiante: — o Carlo Ponti, da estrela, era o mari­do da tordilha. Muito mais parecido, de uma semelhança muito mais taxativa. O sósia era o Carlo Ponti e não o Buda.
Ainda os vejo, de braço dado, na calçada da rua D. Zulmira. E, súbito, completei a minha lembrança da batalha de confete. A odalisca não ia sozinha; lá estava a testa, lá estava o Carlo Ponti, dando ao umbigo uma solene cobertura familiar. Ainda hoje, quando penso nos dois imagino que a cara do marido pode influir no adultério. A cara, ou a obesidade, ou as pernas curtas, ou a papada, ou a salivação muito intensa. Lembro-me de uma senhora que também traía o marido. Quando lhe perguntaram por que, ela alçou a fronte e respondeu, crispada de ressentimento: — “Porque ele sua nas mãos”. Uma outra era infiel porque descobriu apenas o seguinte: — o marido tinha saliva ácida.
Às vezes, quero crer que foi uma dessas pequenas causas, um desses motivos insuspeitados, intranscendentes e, mesmo, humorísticos, que a induziu ao adultério. Eu me fixo na figura do homem. Era parecido com o Carlo Ponti. Muito bem. Mas o Carlo Ponti, da Sophia Loren, tem um gênio promocional ca­paz de fascinar a própria rainha de Sabá. E o outro, da rua D. Zulmira, era gordo e ourives. Vejam: — gordo e ourives. De­pois andaram dizendo que ele transpirava demais, tinha o suor grosso e elástico dos cavalos. Não sei o que havia de história ou de lenda nos mexericos da rua.
Não me recordo se, na mesma ocasião, havia outra infiel nas redondezas. Sabida, consagrada, não. A tordilha era a úni­ca. E as outras, todas as outras, se juntaram contra a adúltera. Deus me livre da virtude ressentida, da fiel sem amor.
Eu estou vendo uma das nossas vizinhas. Andava com os tornozelos enrolados em gazes e ela própria explicava: — “São as minhas varizes! São as minhas varizes!”. Essa andava, de porta em porta, dizendo o diabo. Descobriram ou inventaram que o amante da tordilha era outro ourives. Essa coincidência profissional — e não sei por que — levou o ódio ao delírio. Se fosse um dentista, um agrimensor, um arquiteto, mas um colega! Ainda se falava muito num senador que, traído, matara a mulher, a ti­ro, e lhe cuspira na cova. Pois a gorda das varizes queria fazer o mesmo: — “Se morrer, cuspo-lhe no caixão”.
E eu? Ficava de esquina, olhando a sacada. Se ela aparecia, já sabe: corria, numa vergonha brutal. Eu a via quase todos os dias, com o marido ou sozinha. Ninguém a cumprimentava, nin­guém. E o prodigioso é que o falso Carlo Ponti era cada vez mais amigo da infiel, mais solidário, mais compadecido.
A minha grande felicidade era me enfiar no fundo do quin­tal. E, só, engendrava as minhas fantasias de pequenino Werther. Sonhava, então, com a minha própria morte. Eu morria e ela chegava num luto feroz. E me imaginava, sem vida, com a cabeça no seu regaço. Claro que o morto estaria vendo e ou­vindo tudo. Mamãe e papai, meus irmãos chorando por mim; e ela, junto do caixão, rezando. Só de pensar em tal velório, eu mergulhava no caldeirão das delícias ferventes.
Mas quem se matou foi ela. Um dia, acordo com alarido em casa e por toda a rua. Vizinhas iam de uma calçada para ou­tra, de portão em portão, ou gritavam de janela para janela. A tordilha tomara um veneno e morrera na hora. O médico da Assistência só olhou e foi sumário: — “Morta”.
Dez minutos depois, fez-se, na rua, um folclore fulminan­te. O que se disse, o que se inventou. Uma das comadres jurou que o próprio marido a obrigara a tomar o veneno. Ela bebeu tudo e depois largou o copo, que se estilhaçou no chão. Eu a vira na véspera da morte. Estava de braço com o marido e pa­recia ver as coisas com a doçura atônita de um último olhar. Continuavam falando, sem parar. Um outro dizia que a mulher ainda agonizava e o marido acabou de matá-la a pontapés.
Hoje, há enterro até de kombi. Naquele tempo, não. O da tordilha foi bonito como o de Inês de Castro. Vi quando o coche parou na porta, com seis cavalos de penacho. Não fui espiá-la no caixão. Mas da calçada ouvia o choro do Carlo Ponti, choro abaritonado, choro mugido. Na hora de sair o caixão, ele pôs-se a bramar: — “Canalha! Canalha!”. Como canalha não tem se­xo, pensou-se que acusava a mulher. Mas logo se viu que o ca­nalha era ele mesmo. E, de fato, o ourives promovia, ali, uma autoflagelação ululante.
Ninguém podia imaginar que aquela morte abria lesões, fe­ridas na fragilidade indefesa do menino. Vi quando passaram os cavalos e os penachos. (Depois se disse que iam no mesmo táxi os dois ourives: — o marido e o amante.)
Vem assim dos meus sete anos casimirianos toda a minha compaixão pela infiel. É um sentimento que sobe, que se irra­dia de não sei que profundezas. Muito mais tarde, já homem feito, escrevi um drama cujas raízes estão cravadas na rua Ale­gre: — Perdoa-me por me traíres. Um dos personagens da pe­ça, num arranco de staretz Zózimo, cai aos pés de uma adúlte­ra e beija-lhe os sapatos. Eis o que aprendi em Aldeia Campista: — não se chama uma adúltera de adúltera, jamais.

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