sexta-feira, 3 de abril de 2009

A GRANDE VIÚVA

Antes de falar da sra. Jacqueline Onassis, quero falar da sra. Jacqueline Kennedy. E eis o que eu queria dizer: — a viúva de um pobre-diabo não tem maiores problemas. É fácil subs­tituir um pobre-diabo por outro pobre-diabo. E logo as coisas se acomodam e deslizam num ritmo perfeito. Mas cabe a per­gunta: — e se a mulher for uma Josefina? Ah, é muito difícil ser uma Josefina.
Diz-se muito: — “Ninguém é insubstituível”. Eis aí uma bobagem repetida em todas as épocas e em todos os idiomas. Me­lhor seria dizer, inversamente, que todos são insubstituíveis. Se não todos, uns três ou quatro. Ainda há pouco toda a França ergueu-se contra De Gaulle. Os estudantes viraram os carros e arrancaram os paralelepípedos. Ao mesmo tempo, 12 milhões de operários entravam em greve.
De Gaulle parecia historicamente morto. Tinha que ser removido como um cadáver político. Havia, porém, o problema desesperador: — um De Gaulle só pode ser substituído por ou­tro De Gaulle. E, por todo um mês, houve uma busca histérica. Estudantes, intelectuais, operários, classe média, direita, esquer­da, todos procuravam. E, por fim, o país parou diante da evi­dência humilhante: — a França não tinha outro De Gaulle. E todos se convenceram de que o “velho” é o único e último “grande homem” francês.
E passo, finalmente, à sra. Jacqueline Kennedy, deixando para depois a sra. Jacqueline Onassis, Vamos voltar no tempo. Estamos no dia em que ela se tornou, de véu e grinalda, a espo­sa de John Fitzgerald Kennedy. Vejam o casal: — ela, “a mu­lher bonita”; ele, o “grande homem”. Ninguém percebeu que, antes da lua-de-mel, já os separavam incompatibilidades fatais. Nem a “mulher bonita” faz a felicidade do “grande homem”, nem o “grande homem” faz a felicidade da “mulher bonita”.
Não sei se estou sendo claro. Mas o “grande homem” tem de ser o antiamoroso. Impossível ser, ao mesmo tempo, um for­midável Napoleão e um formidável marido. Bonaparte foi amado por todo um povo, menos por sua mulher. E pior: — Josefina não traiu Napoleão por outro Napoleão. Escolheu um sujeito que não deixou um nome, uma cara, um feito, uma notícia. O amante ou, pluralizando, os amantes de Josefina sumiram até o último vestígio, como se jamais tivessem existido.
Dirão vocês que, no caso de Jacqueline e de Kennedy, os dois pareciam felicíssimos. Mas hoje se sabe que tal felicidade foi uma pose ou, mais exatamente, uma pose fotográfica. Para efeitos políticos, eleitorais, seria insuportável um casal insatis­feito, amargo, neurótico, ressentido.
Mas John nascera para ser presidente da República. Sim, para isso a família o criou. E o casamento foi marcado por essa fata­lidade presidencial. Até que, um dia, tudo aconteceu, como num milagre. Jacqueline Kennedy viu-se mulher de uma casaca, de uma Casa Branca e da Guerra Fria etc. etc. E a vida em comum de marido e mulher não teve nada em comum. Ele cada vez mais “grande homem”. E Jacqueline apenas bonita e apenas trivial. Via-se cavar entre ela e o marido uma distância infinita, espec­tral. (E, por isso, Josefina traiu seu “grande homem” com o idiota desconhecido.)
E, por fim, chegou o grande dia. Faltava a Kennedy, jovem demais, bonito demais, feliz demais, um toque, ou retoque, trá­gico. Abraão Lincoln só assumiu a sua verdadeira dimensão quando o mataram. Para o “grande homem” nada mais árido e, repito, nada mais humilhante do que a simples morte natu­ral. E Jacqueline e Kennedy desceram no Texas, em Dallas, a homicida. O presidente agiu como se fosse cúmplice na pró­pria morte. O automóvel tinha vidros à prova de bala. Se ele baixasse a capota, estaria vivo até hoje. Parte o carro presiden­cial. Os dois representam pela última vez o casal feliz. Estavam juntos e, entre eles, a distância que vai do “grande homem” para a pequena mulher.
E, de repente, tão de repente, aconteceu tudo. A bala interrompeu o sorriso do presidente. Sim, a bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. E foi tudo tão absurdo. Aquela ca­beça ensangüentada que tombou no colo de Jacqueline. E depois ela estava de gatinhas na capota do automóvel. Ainda hoje, o que ninguém entende é que uma mulher, depois de viver esse momento, vá casar-se com Onassis, a quem os jornais chamam de o “grego de ouro”.
O presidente chegou ao hospital tecnicamente morto. Era um cadáver que respirava. Normalmente uma viúva chora para quinze parentes, vizinhos, amigos. Mas o morto era o “grande homem”. Jacqueline estava diante de uma platéia mundial. Sim, uma platéia exigente e voraz que contava as suas lágrimas. Te­ria de ser, além da viúva, a atriz, ou mais atriz do que viúva. Sofria para De Gaulle e outros chefes de Estado; sofria para o próprio povo e para os outros povos. Tinha que chorar lágri­mas jamais choradas. Deram-lhe sedativos, quando deviam injetar-lhe excitantes. E, então, o mundo reconheceria que ja­mais uma viuvez gritara tanto.
Bem me lembro da indignação de um amigo meu quando, meses depois, Jacqueline pôs um maiô na sua viuvez. E o tem­po foi passando. Os românticos esperavam que fosse fiel ao lu­to, eternamente. Mas as coisas aconteciam. A viuvez que põe um maiô está a dois passos do vestido de baile, do decote, do flerte. Como ria nas páginas das revistas européias. Ela se entre­gava, de novo, a todos os sonhos da carne e da alma.
Mas dizia eu que Josefina traiu Napoleão, não com outro Napoleão, mas com o “idiota desconhecido”. E, quando se sou­be que Jacqueline gostava de Onassis, houve um muxoxo mun­dial. Até agora ninguém aceita que uma mulher substitua um Kennedy por um Onassis. Mas pergunto: — será Onassis um “idiota desconhecido”? Já sabemos que desconhecido não é. Será idiota? Duvido.
Estou aqui imaginando o seu começo na Argentina. Vejo-o, nas ruas de Buenos Aires, catando tocos de cigarro no asfalto. Já aí sentimos o gênio e, de fato, só o gênio fundaria uma fortuna juntando guimbas. Tirava o fumo das guimbas e fazia cigarros inteiros. E não parou mais. Há também, na sua ascensão social e econômica, um casamento rico. Mas o seu império nasceu de uma colossal pirâmide de tocos, sim, de tocos de cigarros ainda úmidos da saliva anônima. “O homem mais rico do mundo”, dizem.
Há quem diga: — “Foi casamento por dinheiro”. Outros protestam: — “Mas Jacqueline é rica”. Não importa. Ou por ou­tra: — ninguém ama tanto o dinheiro como o rico, o milionário, o multimilionário. O pau-de-arara pode desprezar o dinheiro. Mas o Rockefeller, pai, faria uma guerra para embolsar mais uns trocados. O que eu queria dizer é que Onassis pode ser tudo, menos idiota. Imagino que sua carne tenha antigas tatuagens eró­ticas. Tatuagens de tempo em que era um vagabundo errante do cais. E, hoje, com sessenta e poucos, deve ter a experiência de voluptuosidades mortais. Mas se casa com Jacqueline por­que é a viúva de John Kennedy. É a tragédia de Dallas que o fascina. Do contrário, não haveria casamento, não haveria na­da. As belezas internacionais que passam pela sua vida levam um cachê, só um cachê.
Seja como for, o casamento da ilha de Scorpios não deve espantar. A bela e banal senhora sempre foi muito mais Jacque­line Onassis do que Jacqueline Kennedy.
[22/10/1968]

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