Antes de falar da sra. Jacqueline Onassis, quero falar da sra. Jacqueline Kennedy. E eis o que eu queria dizer: — a viúva de um pobre-diabo não tem maiores problemas. É fácil substituir um pobre-diabo por outro pobre-diabo. E logo as coisas se acomodam e deslizam num ritmo perfeito. Mas cabe a pergunta: — e se a mulher for uma Josefina? Ah, é muito difícil ser uma Josefina.
Diz-se muito: — “Ninguém é insubstituível”. Eis aí uma bobagem repetida em todas as épocas e em todos os idiomas. Melhor seria dizer, inversamente, que todos são insubstituíveis. Se não todos, uns três ou quatro. Ainda há pouco toda a França ergueu-se contra De Gaulle. Os estudantes viraram os carros e arrancaram os paralelepípedos. Ao mesmo tempo, 12 milhões de operários entravam em greve.
De Gaulle parecia historicamente morto. Tinha que ser removido como um cadáver político. Havia, porém, o problema desesperador: — um De Gaulle só pode ser substituído por outro De Gaulle. E, por todo um mês, houve uma busca histérica. Estudantes, intelectuais, operários, classe média, direita, esquerda, todos procuravam. E, por fim, o país parou diante da evidência humilhante: — a França não tinha outro De Gaulle. E todos se convenceram de que o “velho” é o único e último “grande homem” francês.
E passo, finalmente, à sra. Jacqueline Kennedy, deixando para depois a sra. Jacqueline Onassis, Vamos voltar no tempo. Estamos no dia em que ela se tornou, de véu e grinalda, a esposa de John Fitzgerald Kennedy. Vejam o casal: — ela, “a mulher bonita”; ele, o “grande homem”. Ninguém percebeu que, antes da lua-de-mel, já os separavam incompatibilidades fatais. Nem a “mulher bonita” faz a felicidade do “grande homem”, nem o “grande homem” faz a felicidade da “mulher bonita”.
Não sei se estou sendo claro. Mas o “grande homem” tem de ser o antiamoroso. Impossível ser, ao mesmo tempo, um formidável Napoleão e um formidável marido. Bonaparte foi amado por todo um povo, menos por sua mulher. E pior: — Josefina não traiu Napoleão por outro Napoleão. Escolheu um sujeito que não deixou um nome, uma cara, um feito, uma notícia. O amante ou, pluralizando, os amantes de Josefina sumiram até o último vestígio, como se jamais tivessem existido.
Dirão vocês que, no caso de Jacqueline e de Kennedy, os dois pareciam felicíssimos. Mas hoje se sabe que tal felicidade foi uma pose ou, mais exatamente, uma pose fotográfica. Para efeitos políticos, eleitorais, seria insuportável um casal insatisfeito, amargo, neurótico, ressentido.
Mas John nascera para ser presidente da República. Sim, para isso a família o criou. E o casamento foi marcado por essa fatalidade presidencial. Até que, um dia, tudo aconteceu, como num milagre. Jacqueline Kennedy viu-se mulher de uma casaca, de uma Casa Branca e da Guerra Fria etc. etc. E a vida em comum de marido e mulher não teve nada em comum. Ele cada vez mais “grande homem”. E Jacqueline apenas bonita e apenas trivial. Via-se cavar entre ela e o marido uma distância infinita, espectral. (E, por isso, Josefina traiu seu “grande homem” com o idiota desconhecido.)
E, por fim, chegou o grande dia. Faltava a Kennedy, jovem demais, bonito demais, feliz demais, um toque, ou retoque, trágico. Abraão Lincoln só assumiu a sua verdadeira dimensão quando o mataram. Para o “grande homem” nada mais árido e, repito, nada mais humilhante do que a simples morte natural. E Jacqueline e Kennedy desceram no Texas, em Dallas, a homicida. O presidente agiu como se fosse cúmplice na própria morte. O automóvel tinha vidros à prova de bala. Se ele baixasse a capota, estaria vivo até hoje. Parte o carro presidencial. Os dois representam pela última vez o casal feliz. Estavam juntos e, entre eles, a distância que vai do “grande homem” para a pequena mulher.
E, de repente, tão de repente, aconteceu tudo. A bala interrompeu o sorriso do presidente. Sim, a bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. E foi tudo tão absurdo. Aquela cabeça ensangüentada que tombou no colo de Jacqueline. E depois ela estava de gatinhas na capota do automóvel. Ainda hoje, o que ninguém entende é que uma mulher, depois de viver esse momento, vá casar-se com Onassis, a quem os jornais chamam de o “grego de ouro”.
O presidente chegou ao hospital tecnicamente morto. Era um cadáver que respirava. Normalmente uma viúva chora para quinze parentes, vizinhos, amigos. Mas o morto era o “grande homem”. Jacqueline estava diante de uma platéia mundial. Sim, uma platéia exigente e voraz que contava as suas lágrimas. Teria de ser, além da viúva, a atriz, ou mais atriz do que viúva. Sofria para De Gaulle e outros chefes de Estado; sofria para o próprio povo e para os outros povos. Tinha que chorar lágrimas jamais choradas. Deram-lhe sedativos, quando deviam injetar-lhe excitantes. E, então, o mundo reconheceria que jamais uma viuvez gritara tanto.
Bem me lembro da indignação de um amigo meu quando, meses depois, Jacqueline pôs um maiô na sua viuvez. E o tempo foi passando. Os românticos esperavam que fosse fiel ao luto, eternamente. Mas as coisas aconteciam. A viuvez que põe um maiô está a dois passos do vestido de baile, do decote, do flerte. Como ria nas páginas das revistas européias. Ela se entregava, de novo, a todos os sonhos da carne e da alma.
Mas dizia eu que Josefina traiu Napoleão, não com outro Napoleão, mas com o “idiota desconhecido”. E, quando se soube que Jacqueline gostava de Onassis, houve um muxoxo mundial. Até agora ninguém aceita que uma mulher substitua um Kennedy por um Onassis. Mas pergunto: — será Onassis um “idiota desconhecido”? Já sabemos que desconhecido não é. Será idiota? Duvido.
Estou aqui imaginando o seu começo na Argentina. Vejo-o, nas ruas de Buenos Aires, catando tocos de cigarro no asfalto. Já aí sentimos o gênio e, de fato, só o gênio fundaria uma fortuna juntando guimbas. Tirava o fumo das guimbas e fazia cigarros inteiros. E não parou mais. Há também, na sua ascensão social e econômica, um casamento rico. Mas o seu império nasceu de uma colossal pirâmide de tocos, sim, de tocos de cigarros ainda úmidos da saliva anônima. “O homem mais rico do mundo”, dizem.
Há quem diga: — “Foi casamento por dinheiro”. Outros protestam: — “Mas Jacqueline é rica”. Não importa. Ou por outra: — ninguém ama tanto o dinheiro como o rico, o milionário, o multimilionário. O pau-de-arara pode desprezar o dinheiro. Mas o Rockefeller, pai, faria uma guerra para embolsar mais uns trocados. O que eu queria dizer é que Onassis pode ser tudo, menos idiota. Imagino que sua carne tenha antigas tatuagens eróticas. Tatuagens de tempo em que era um vagabundo errante do cais. E, hoje, com sessenta e poucos, deve ter a experiência de voluptuosidades mortais. Mas se casa com Jacqueline porque é a viúva de John Kennedy. É a tragédia de Dallas que o fascina. Do contrário, não haveria casamento, não haveria nada. As belezas internacionais que passam pela sua vida levam um cachê, só um cachê.
Seja como for, o casamento da ilha de Scorpios não deve espantar. A bela e banal senhora sempre foi muito mais Jacqueline Onassis do que Jacqueline Kennedy.
[22/10/1968]
sexta-feira, 3 de abril de 2009
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