sábado, 4 de abril de 2009

O DEUS FENECIDO

Imaginem um palácio nas Laranjeiras. Nas pias, bicas de ou­ro. Se me disserem que as torneiras jorram, em vez da nossa ir­mã, a água, leite de cabra, eu acreditaria piamente. No jardim, até as samambaias têm consciência de classe. Quanto às paredes, vocês não fazem uma idéia. O sujeito quer um Rembrandt, e tem um Rembrandt. Um Goya, e tem um Goya. Um Murilo, e tem um Murilo.
Em se tratando de Picasso, nem se fala. Há o Picasso da fa­se azul, roxa, amarela, verde etc. etc. É um Picasso diverso, nu­meroso ou, se me permitem a metáfora, um Picasso de porta de tinturaria. A visita olha para as telas famosas e sofre uma crudelíssima humilhação plástica. Há um ceguinho na rua do Ou­vidor, que vive a tocar, ao violino, eternamente, o mesmo tan­go. E os que passam vão pingando, no pires, a moeda de sua caridade. Eis o que eu queria dizer: — o sujeito que entra em tal residência sente-se o próprio ceguinho da rua do Ouvidor.
Pois bem. E o palácio, feérico como um velório, abriu, de par em par, as suas portas de bronze. Era uma festa. Todo o grã-finismo presente. E também presentes o corpo diplomático, os representantes dos três poderes. Do lado de fora, a plebe lam­bia com a vista as jóias, os manteaux, os sapatos de prata, os penteados de Josefina Bonaparte etc. etc.
Há de perguntar quem me leia: — e por que esse bárbaro esplendor das Mil e uma noites? Ora, nenhuma família gasta tan­to sem uma intenção precisa e, por vezes, inconfessável. Cabe então a pergunta: — e por que se fazia, no Brasil, uma festa as­sim delirante? Os donos da casa queriam talvez competir com o Patino?
Agora vem a surpresa realmente deliciosa: — uma grande figura ia ser recebida. Mas quem? A rainha da Inglaterra, que, por sutilíssimas razões de Estado, antecipara a sua chegada? Não. Não se tratava de Sua Majestade. Para não tomar o tempo do leitor, encerro aqui o suspense — quem ia ser recebida era uma senhora comunista.
Exatamente: — uma senhora comunista. Portanto, tratava-se de uma festa ideológica. Imagino que o leitor queira saber nome, endereço, filiação, estado civil e outros dados pessoais de “La Passionaria”. Vejamos, primeiro, o nome. Chamava-se... Bolas, não me lembro. Acho que é, se não me engano, Malvina, d. Malvina.
Malvina, Malvina. Engano meu. Estou fazendo confusão com a linha de bonde Malvino Reis. Seria Mavílis? Também não. Mavílis é um clube de futebol do subúrbio. Mas como se cha­mava o diabo da mulher? Desculpem. “Mulher”, não. Dama, senhôra, com acento circunflexo.
Vejam vocês. Por um desses lapsos funestos, não consigo me lembrar do nome. Sei do feitio do nariz, da cara, sei do sa­pato. E só não sei do nome. Malvina, não é. Vamos chamá-la de “La Passionaria”. Pois bem. E “La Passionaria” era a musa da festa. Os donos da casa avisavam aos recém-chegados: — “Vem Fulana! Vem Fulana!”. E os convidados iluminados. En­tre parênteses, “La Passionaria” não foi a primeira a chegar, e longe disso. De caso pensado, para fazer suspense, custou a apa­recer. Por fim, já se insinuava a hipótese de um bolo ignominioso. De repente, alguém veio correndo: — “Chegou, che­gou!”. Houve um frêmito nos decotes.
Os donos da casa se arremessaram. “La Passionaria” che­gava, com o marido, um estrábico. Entre parênteses, esclareço que não tomo o estrabismo por defeito. Na minha infância co­nheci uma menina a quem chamavam de “caolha” e que foi uma das minhas primeiras namoradas por isso mesmo, por ser “cao­lha”. Dei a explicação e passo adiante. “La Passionaria” foi lo­go envolvida, quase raptada, pelos presentes. Lera um pouco de Marx e mais do que as orelhas de Marcuse. Ou por outra: — o marido, o estrábico, é que lera algum Marx e achava Mar­cuse “perfumaria”.
Só com a presença da marxista se soube de tudo. A festa tinha, por um lado, a intenção de celebrar “La Passionaria” e, por outro lado, a subintenção de falar do Vandré. Exatamente: — do Vandré. E, de repente, a dona da casa anunciou uma surpre­sa. Todos se viraram na direção da surpresa. Era um quadro coberto por um pano vermelho. A princípio, imaginou-se que seria um novo Gauguin, ou Van Gogh, ou Rembrandt, para a coleção do palácio.
Debaixo do quadro, estavam a dona da casa e “La Passionaria”. O anfitrião pedia: — “Atenção! Atenção!”. Silêncio. E, súbito, puxa a fitinha e descobre o quadro. Era um retrato, e sabem de quem? Do Vandré. Palmas de todos os lados. Houve “bravos”, “bravíssimos”; quase pediram “bis” como na ópe­ra. O dono da casa berrava: — “Silêncio! Silêncio! Um momento!”.
A comunista ia falar. Simplesmente, queria contar um epi­sódio delicioso. Nas vésperas do Festival da Canção, saltara no Galeão uma dessas velhas internacionais indescritíveis. Se não me engano, espanhola. Era o que se pode chamar uma “solteirona de Garcia Lorca”. Pois a santa senhora comparecera ao Maracanãzinho para ouvir as canções do mundo. Até aí nada de­mais. E, de repente, a solteirona olha e vê o Vandré. Tremeu em cima dos sapatos: — “Pero es un santo! Un santo!”. Foi tal o deslumbramento, que a solteirona saiu dali carregada.
Claro que “La Passionaria”, como boa materialista, acha que esse negócio de santo é uma piada. Mas ela, comunista, chama­va a atenção dos presentes para a “cara profunda” do Vandré. E repetia “profunda, profunda”, como se uma cara pudesse ter a profundidade de um poço. Eis a sua opinião: — Vandré não é santo, mesmo porque um santo, qualquer santo, é um “bo­lha”. É, porém, o profeta, sim, o profeta da “Grande Revolu­ção”. E dizia a oradora: — “Vejam! Vejam!”. Segundo ela, nin­guém teria aquela cara de graça e à toa. Uma cara pode ser uma predestinação. E, então, houve um movimento unânime. Aquele sarau de grã-finos deixou de ser um sarau de grã-finos. Rompia dos decotes e dos black-ties uma nova fé, um novo fanatismo. Toda devoção sincera é patética, mesmo que se evole de um decote ou de um smoking. Aquilo era um Canudos grã-fino e o Vandré um Antônio Conselheiro sem barbas, sem camisola e sem alpercatas.
De repente, alguém perguntou: — “E o retrato de Gueva­ra?”. De fato, naquele mesmo lugar, misturado com as mulatas de Gauguin e os jóqueis de Degas, estava o retrato do guerri­lheiro morto. E Vandré o substituíra de maneira mais ultrajante. Eis a verdade: — Guevara fora, sim, a mania dos grã-finos. Andou em todos “os mais belos interiores do Brasil” da Manche­te. Mas começou o desgaste quase imperceptível. Hoje, é a fé perdida de um deus fenecido. A sua bela cara fora enxotada. Dizem que o retrato de Che, na sua impotência e humilhação, teve um acesso de asma.
[31/10/1968]

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