Eu me lembro da chegada de Getúlio (o que nos sobrara da Crítica eram oitocentos mil-réis. Sim, oitocentos mil-réis de uma última cobrança. Por acaso, meu irmão Mário Filho ficara com o dinheiro. Durante dois anos, uma família de doze pessoas ia viver de oitocentos mil-réis). Toda a cidade pôs um lenço vermelho no pescoço, para receber o chefe da revolução.
Disse lenço vermelho. E não foi só. A cidade vestiu-se de cáqui, de botas, até de esporas. Getúlio lembrava a chegada de Nilo Peçanha, ou a passagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral. Mas era o suicida. Muitos anos depois, conversei com João Neves da Fontoura. E este falou, com um cordial desprezo, do tiro no peito.
João Neves, já surdo (não ouvia ninguém, nem a si mesmo), fingia uma inteligência que não tinha. Segundo ele, Lacerda, major Vaz, Gregório, mar de lama, tudo fora mero pretexto. Em verdade, Getúlio trazia uma clara predestinação. Sua morte era anterior a Lacerda, à Última Hora. Só por milagre não se matara antes. E se não fosse Lacerda, seria outro, e outro, e outro. Getúlio sempre fora um fascinado pelo suicídio.
Ouvi João Neves e nada objetei. Mas não acreditei em nenhuma de suas palavras. Ou por outra: — ele estaria certo se generalizasse. A verdade é que a vocação suicida existe, preexiste, em qualquer um. Quem não pensou em se matar? Claro que sempre há um Carlos Lacerda, sempre há um Gregório, sempre há uma Última Hora para cavar o abismo. Mas as pessoas mais serenas, mais equilibradas, têm, de vez em quando, uma brusca e violenta nostalgia da morte.
E nem se pense que temos medo da morte. É mentira. Ou por outra: — é um falso medo, um medo induzido por uma série de injunções morais, sociais, religiosas. A verdade é que o nosso cotidiano está cheio de pequenas imprudências, de pequenos vícios, de riscos propositais. O cigarro que se fuma, ou a cerveja que se bebe, o que exprime senão a secreta vontade de autodestruição?
Insisto em Getúlio porque, muitas vezes, de 30 a 35, pensei na morte e a desejei. Não a morte natural; essa, não. Lembro-me de um jornalista que, logo após a revolução de 30, foi a Paquetá, com a família, num amorável piquenique. Levou a mulher e toda a filharada. E voltou de Paquetá carregado. Comera um pastel estragado, ou uma coxinha, não me lembro bem, e assim morreu. Há na morte por intoxicação alimentar um inevitável toque humorístico que humilha o cadáver e compromete o velório.
Mas escrevi que nos sobraram da Crítica, exatamente, os oitocentos mil-réis de uma última cobrança. E éramos doze pessoas, inclusive a caçula, Dulcinha, que vivia e sobrevivia do leite materno. Claro que os homens não iam cruzar os braços. Os mais velhos eram válidos, tinham experiência profissional, relações. Uma semana depois, e com todo o élan do nosso otimismo, fomos bater, de porta em porta. A única coisa que sabíamos fazer era jornal. Eu tinha apenas dezoito anos, mas fizera a minha iniciação jornalística aos treze. No fim de um mês de tentativas diárias, fazíamos a amarga constatação: — todas as portas estavam fechadas para nós.
Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues. Em vida de meu pai e enquanto circulou a Crítica, tínhamos amigos por toda parte. Eu era tratado, desde os treze anos, como um pequeno gênio. Mas morto Mário Rodrigues e morta a Crítica, os rapapés sumiram até o último vestígio. Ninguém era amigo. E adquiri, naqueles dias, uma experiência de Balzac. Todo mundo tinha medo e ódio de meu pai. O ódio era amável, era risonho, era cínico por causa do medo.
Todos desempregados e os oitocentos mil-réis viviam os seus últimos tostões. E, então, para não morrer, fisicamente, de fome, nós começamos a vender tudo. Falei dos pratos pintados pela minha avó paterna (a escrava de sandália e a morena de cântaro no ombro). Pois bem: — os pratos foram oferecidos e humilhados com a recusa. Mas havia a vitrola.
A nossa vitrola. Era, para a época, um móvel esplêndido, em forma de catedral liliputiana. E uma maravilha de som. Em 1930, não saía lá de casa um rapaz, Cadinhos, que foi um amigo prodigioso de nossa família. Já era tuberculoso. (De vez em quando, passava o lenço no lábio e espiava o sangue.) Pois vivia para a nossa família e morreu por nós. Carlinhos saiu para vender a vitrola.
Ele achou que o grande mercado era o Mangue. E foi para lá. Ah, em 1930, o Mangue era feérico como uma Broadway. Em cada janelinha, uma mulata de Di Cavalcanti. E mais: — as francesas, e as polacas que também eram francesas. Hoje, não há mais mon chéri, mon chéri. Carlinhos andou por lá oferecendo a vitrola às donas, às meninas, aos botequins. Achou um luso e tentou o luso. Pôs a vitrola nas nuvens. E arrancou oitocentos mil-réis.
Lembro-me, exatamente, da quantia: — oitocentos mil-réis, a mesma que sobrara da Crítica. Quando ele chegou em casa foi uma festa tremenda. Era dinheiro. A casa já estava sem luz, sem gás; não havia manteiga para o pão. Tínhamos dinheiro contadinho, para o bonde. E os oitocentos mil-réis eram, para cada um de nós, a própria ressurreição. Tratamos primeiro de comprar pão, manteiga e bolachinha de água e sal.
O diabo era o emprego. Os oitocentos mil-réis da vitrola iam acabar como acabaram os outros, da Crítica. A esperança era O Globo. Conhecíamos o Roberto Marinho de cumprimento, de sorriso; e trabalhava lá uma bela figura humana, o Costa Soares. Mas, antes de falar no Globo, eu queria dizer alguma coisa sobre Carlinhos.Vinha ele do tempo de meu pai e de Roberto. Os dois ainda viviam quando um sujeito, por outro jornal, insultou a minha avó paterna. Por conta própria, e só por amor a meu pai, Carlinhos apanhou o revólver e foi procurar o sujeito. Encontrou-o na rua Sete, em hora de movimento. Deu-lhe um tiro na nádega e fugiu. Preso, finalmente, foi submetido a torturas inimagináveis. A polícia queria que dissesse: — “Foi Mário Rodrigues que mandou”. Carlinhos respondeu até o fim: — “Não, não e não”. Quando saiu, era um homem liquidado. Passou dias e dias vomitando sangue.
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