terça-feira, 5 de maio de 2009

Capítulo 29 - A Menina sem Estrela

Eu me lembro da chegada de Getúlio (o que nos sobrara da Crítica eram oitocentos mil-réis. Sim, oitocentos mil-réis de uma última cobrança. Por acaso, meu irmão Mário Filho ficara com o dinheiro. Durante dois anos, uma família de doze pes­soas ia viver de oitocentos mil-réis). Toda a cidade pôs um len­ço vermelho no pescoço, para receber o chefe da revolução.
Disse lenço vermelho. E não foi só. A cidade vestiu-se de cáqui, de botas, até de esporas. Getúlio lembrava a chegada de Nilo Peçanha, ou a passagem de Gago Coutinho e Sacadura Ca­bral. Mas era o suicida. Muitos anos depois, conversei com João Neves da Fontoura. E este falou, com um cordial desprezo, do tiro no peito.
João Neves, já surdo (não ouvia ninguém, nem a si mesmo), fingia uma inteligência que não tinha. Segundo ele, Lacerda, ma­jor Vaz, Gregório, mar de lama, tudo fora mero pretexto. Em verdade, Getúlio trazia uma clara predestinação. Sua morte era anterior a Lacerda, à Última Hora. Só por milagre não se mata­ra antes. E se não fosse Lacerda, seria outro, e outro, e outro. Getúlio sempre fora um fascinado pelo suicídio.
Ouvi João Neves e nada objetei. Mas não acreditei em ne­nhuma de suas palavras. Ou por outra: — ele estaria certo se generalizasse. A verdade é que a vocação suicida existe, preexiste, em qualquer um. Quem não pensou em se matar? Claro que sempre há um Carlos Lacerda, sempre há um Gregório, sem­pre há uma Última Hora para cavar o abismo. Mas as pessoas mais serenas, mais equilibradas, têm, de vez em quando, uma brusca e violenta nostalgia da morte.
E nem se pense que temos medo da morte. É mentira. Ou por outra: — é um falso medo, um medo induzido por uma sé­rie de injunções morais, sociais, religiosas. A verdade é que o nosso cotidiano está cheio de pequenas imprudências, de pe­quenos vícios, de riscos propositais. O cigarro que se fuma, ou a cerveja que se bebe, o que exprime senão a secreta vontade de autodestruição?
Insisto em Getúlio porque, muitas vezes, de 30 a 35, pensei na morte e a desejei. Não a morte natural; essa, não. Lembro-me de um jornalista que, logo após a revolução de 30, foi a Paquetá, com a família, num amorável piquenique. Levou a mulher e toda a filharada. E voltou de Paquetá carregado. Comera um pastel estragado, ou uma coxinha, não me lembro bem, e assim morreu. Há na morte por intoxicação alimentar um inevitável toque hu­morístico que humilha o cadáver e compromete o velório.
Mas escrevi que nos sobraram da Crítica, exatamente, os oitocentos mil-réis de uma última cobrança. E éramos doze pes­soas, inclusive a caçula, Dulcinha, que vivia e sobrevivia do lei­te materno. Claro que os homens não iam cruzar os braços. Os mais velhos eram válidos, tinham experiência profissional, re­lações. Uma semana depois, e com todo o élan do nosso otimis­mo, fomos bater, de porta em porta. A única coisa que sabíamos fazer era jornal. Eu tinha apenas dezoito anos, mas fizera a minha iniciação jornalística aos treze. No fim de um mês de tentativas diárias, fazíamos a amarga constatação: — todas as portas esta­vam fechadas para nós.
Ninguém queria empregar os filhos de Mário Rodrigues. Em vida de meu pai e enquanto circulou a Crítica, tínhamos ami­gos por toda parte. Eu era tratado, desde os treze anos, como um pequeno gênio. Mas morto Mário Rodrigues e morta a Crítica, os rapapés sumiram até o último vestígio. Ninguém era ami­go. E adquiri, naqueles dias, uma experiência de Balzac. Todo mundo tinha medo e ódio de meu pai. O ódio era amável, era risonho, era cínico por causa do medo.
Todos desempregados e os oitocentos mil-réis viviam os seus últimos tostões. E, então, para não morrer, fisicamente, de fome, nós começamos a vender tudo. Falei dos pratos pintados pela minha avó paterna (a escrava de sandália e a morena de cân­taro no ombro). Pois bem: — os pratos foram oferecidos e hu­milhados com a recusa. Mas havia a vitrola.
A nossa vitrola. Era, para a época, um móvel esplêndido, em forma de catedral liliputiana. E uma maravilha de som. Em 1930, não saía lá de casa um rapaz, Cadinhos, que foi um ami­go prodigioso de nossa família. Já era tuberculoso. (De vez em quando, passava o lenço no lábio e espiava o sangue.) Pois vi­via para a nossa família e morreu por nós. Carlinhos saiu para vender a vitrola.
Ele achou que o grande mercado era o Mangue. E foi para lá. Ah, em 1930, o Mangue era feérico como uma Broadway. Em cada janelinha, uma mulata de Di Cavalcanti. E mais: — as francesas, e as polacas que também eram francesas. Hoje, não há mais mon chéri, mon chéri. Carlinhos andou por lá ofere­cendo a vitrola às donas, às meninas, aos botequins. Achou um luso e tentou o luso. Pôs a vitrola nas nuvens. E arrancou oito­centos mil-réis.
Lembro-me, exatamente, da quantia: — oitocentos mil-réis, a mesma que sobrara da Crítica. Quando ele chegou em casa foi uma festa tremenda. Era dinheiro. A casa já estava sem luz, sem gás; não havia manteiga para o pão. Tínhamos dinheiro contadinho, para o bonde. E os oitocentos mil-réis eram, para cada um de nós, a própria ressurreição. Tratamos primeiro de com­prar pão, manteiga e bolachinha de água e sal.
O diabo era o emprego. Os oitocentos mil-réis da vitrola iam acabar como acabaram os outros, da Crítica. A esperança era O Globo. Conhecíamos o Roberto Marinho de cumprimen­to, de sorriso; e trabalhava lá uma bela figura humana, o Costa Soares. Mas, antes de falar no Globo, eu queria dizer alguma coisa sobre Carlinhos.Vinha ele do tempo de meu pai e de Roberto. Os dois ain­da viviam quando um sujeito, por outro jornal, insultou a mi­nha avó paterna. Por conta própria, e só por amor a meu pai, Carlinhos apanhou o revólver e foi procurar o sujeito. Encontrou-o na rua Sete, em hora de movimento. Deu-lhe um tiro na nádega e fugiu. Preso, finalmente, foi submetido a tor­turas inimagináveis. A polícia queria que dissesse: — “Foi Má­rio Rodrigues que mandou”. Carlinhos respondeu até o fim: — “Não, não e não”. Quando saiu, era um homem liquidado. Pas­sou dias e dias vomitando sangue.

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