segunda-feira, 4 de maio de 2009

Capítulo 28 - A Menina sem Estrela

“Pára, para!”, berrou meu irmão Joffre para o chauffeur. O táxi vinha de Copacabana, rua Souza Lima, e entrara em Sete de Setembro pela praça Quinze. A Crítica era, justamente, na rua do Carmo, quase esquina de Sete. E víamos, de repente, a multidão. O jornal estava sendo empastelado. Enquanto Joffre mandava parar, eu berrei: — “Contínua, continua!”.
Era a revolução. Vinte e quatro de outubro de 1930. Na­quela madrugada eu voltara para a casa às três, três e pouco. Vínhamos eu e Aldemar Baía, quando dobramos na esquina do hospício, a caminho do Túnel Novo, olhei e não vi um solda­do. Noite quieta, passiva; as ruas lívidas e mais longas e, por toda parte, um silêncio de cidade abandonada. O túnel vazio também.
O táxi me deixou em casa. E o Baía, que voltou sozinho, já encontrou o túnel ocupado. O Terceiro Regimento saíra e, numa progressão fulminante, ocupava todas as posições. Em ca­sa, sem desconfiar de nada, eu fazia a minha ceia solitária. E, depois, apanhei um romance e li, se tanto, umas dez páginas. Fui dormir. Comecei a sonhar, imediatamente. Ouvia gritos; mu­lheres alucinadas se esganiçavam nas sacadas; buzinas acorda­vam os galos; e o medo escorria das paredes.
Acordei e continuava ouvindo. Joffre veio correndo: — “Revolução”. Pulei da cama. Fomos para a janela, olhar a rua. O pânico era só de mulheres, algumas de camisola na sacada. Do lado, um vizinho punha uma trouxa de roupa no automó­vel. Carros passavam em pânica velocidade. Sujeitos na calça­da, berrando. Eu, Joffre, os outros irmãos, numa exaltação, nu­ma euforia, como se a revolução fosse uma festa delirante.
E não tive medo. Minha mãe acordou, minhas irmãs e todas sem medo. Não percebemos que aquilo, para nós, era a catástro­fe. Só senti o medo, o grande medo, a solidão brutal, horas de­pois, quando passamos, de automóvel, pela esquina da rua do Car­mo. Estavam empastelando o jornal; e, então, o medo baixou em mim. Joffre, não. Nunca o vi ter medo de nada e de ninguém. Que­ria saltar e brigar, sozinho, contra a multidão enlouquecida.
O chauffeur reduzira a marcha. Vinham dois sujeitos pela calçada e um deles disse: — “Olha os filhos de Mário Rodri­gues!”. Berrei para o chauffeur: — “Depressa! Depressa!”. Ou­tros jornais eram empastelados também: — A Noite, Jornal do Brasil etc. etc. Eu me crispava dentro do automóvel; cerrava os dentes. E se o automóvel parasse? E se nos reconhecessem? E se eu fosse linchado? Linchado pela multidão. A meu lado, Joffre explodia em palavrões.
O grande medo. Não era a primeira vez que o sentia na car­ne e na alma. Meses atrás, vivera um desses momentos de pa­vor que ninguém esquece. Foi quando meu irmão Roberto le­vou um tiro e gritou. O que senti, naquele momento, e antes do amor, da compaixão, da infinita solidariedade — antes de tudo, foi o medo. Durante anos, eu o escondi de mim mesmo; dei-lhe outro nome. Não era medo, era outra coisa. E me imagi­nava apenas solidário, apenas compassivo, e só possuído de amor. Foi muito depois, em Campos do Jordão, que eu admiti para mim mesmo a verdade.
Eu estava na minha cama de enfermaria. Dez e meia, onze da noite. Um frio atroz; os meus cabelos estavam gelados. E, de repente, alguém grita na cama do lado: — “Sangue! Sangue!”. Era um rapazinho, estrábico, chamado Tico-Tico. Outro pula e acende a luz. E vimos Tico-Tico, sentado, com um olho prodigiosamente azul e atônito. As golfadas vinham, umas atrás das outras, e o afogavam no próprio sangue. “Vou morrer”, pensa­va ele, “vou morrer”. E tinha medo.
Tico-Tico agonizava, e só então confessei a mim mesmo o medo de 26 de dezembro de 1929. Um medo maior que o amor, que a pena, maior que todos os outros sentimentos so­mados. E, de novo, em 24 de outubro, quase um ano depois, eu o sentia cravado em mim, profundamente. Já disse e repito: — olho toda a minha adolescência sem nenhuma ternura, ne­nhuma indulgência. Naquele tempo, eu era outro.
Voltamos, desta vez, pelo Túnel Velho. Tudo ocupado pe­lo Exército. Soldados faziam parar o carro, olhavam a cara dos passageiros e davam passagem. E então comecei a me sentir sal­vo. Meu pai fizera toda a campanha de Júlio Prestes; e, depois de sua morte, a Crítica seguira a mesma linha. E eu não imagi­nava que a vitória de Getúlio Vargas era quase a destruição de minha família.
Meus irmãos Milton e Mário, diretores da Crítica, podiam ter fugido. Mas não acreditaram na prisão. No dia seguinte, Danton Jobim apareceu lá em casa. E, no meio da conversa, entra uma das minhas irmãs, apavorada: — “Polícia! Polícia!”. De fa­to, uma meia dúzia de tiras estava no portão. Milton, Mário e Danton saíram pelos fundos e pularam o muro do vizinho.
Morava, ao lado, uma família amiga. O dono da casa, po­rém, não teve uma dúvida, um escrúpulo. Viu os três no seu quintal e veio correndo chamar a polícia: — “Estão aqui! Estão aqui!”. Danton pôde sair, porque não era Rodrigues. Milton e Mário passaram quase arrastados. Minha cunhada, Célia, estava na calçada, ainda de luto por meu pai e por Roberto. Viu o ma­rido com um tira em cada lado. Atirou-se nos seus braços, aos soluços. Mário dizia, pálido: — “Escuta, Célia, escuta. Olha. Cal­ma, Célia”. Finalmente, entrou no carro. Milton foi na frente. E o automóvel partiu, a toda velocidade.
Foi Cândido Pessoa que os soltou. Avisado por um de nós, invadiu a chefatura. Portou-se, lá, aos berros e arrancos, como um Tartarin paraibano. Falou de dedo na cara; e exigia a liber­dade imediata. João Pessoa, companheiro de chapa de Getúlio, fora assassinado por um Dantas. Como Cid, que mesmo depois de morto ainda vencia batalhas, assim o morto político tem mais poder do que em vida. Pessoa. Ao simples som desse nome, as paredes se abriam, os edifícios se agachavam. Milton e Mário voltavam, cerca de meia-noite. Pouco depois, Getúlio entrava na cidade. Era o suicida.

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