quinta-feira, 7 de maio de 2009

Capítulo 31 - A Menina sem Estrela

O Globo tinha vinte e poucos dias (se não me engano), quan­do morreu Irineu Marinho. Minha família morava, então, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Lembro-me do te­lefonema para meu pai, dando a notícia. Irineu Marinho morre­ra, pela manhã, no banho. E, como demorasse, alguém foi ba­ter na porta. Nenhuma resposta.
Foram chamar Roberto, o filho mais velho. E ele, com vin­te e poucos anos, forte (remava no Boqueirão do Passeio), me­teu o ombro e arrombou a porta. O pai estava morto. A pessoa que telefonou lá para casa ainda fez o comentário: — “O Geral­do tem uma sorte danada. Agora O Globo fecha. Fecha”.
Geraldo Rocha estava com A Noite, e Irineu Marinho era o seu único concorrente. Para ele, Geraldo, aquela morte, an­tes da consolidação de O Globo, era a sorte grande. Irineu Ma­rinho fundara A Noite, jornal que é, digamos, talvez um caso único em toda a história jornalística. Lia-se não por necessida­de, mas por amor. Sim. A Noite foi amada por todo um povo.
Penso nas noites de minha infância, em Aldeia Campista. O jornaleiro vinha de porta em porta. Os chefes de família fica­vam, de pijama, no portão, na janela, esperando. E lá, longe, o jornaleiro gritava: — “A Noite, A Noite!”. Ainda vejo um su­jeito, encostado num lampião, lendo à luz de gás o jornal de Irineu Marinho. Estou certo de que se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma ma­neira e por amor.
Um dia, Irineu Marinho saiu de A Noite e fundou O Globo. Lá ficou Geraldo Rocha, baiano demoníaco, de uma empolgan­te falta de escrúpulos. Morre Irineu Marinho, ótimo. Segundo me contaram, houve quem pensasse em Roberto para a dire­ção. Mas o próprio foi de um senso comum magistral. Disse: — “É Euricles, tem que ser Euricles, só pode ser Euricles”.
Euricles (não sei se com i ou com y) era um homem de bem. Aí está dito tudo. Inútil procurar outras virtudes. Minto. Euri­cles tinha, sim, a outra virtude: uma capacidade de trabalho qua­se desumana. Fisicamente pequeno, cara amarrada, era o cha­mado pé-de-boi. Mas essa taciturna, áspera probidade foi vital para O Globo.
E, de repente, também Euricles morreu. Da mesma reda­ção, saía o segundo defunto. O Globo parecia um jornal conde­nado. Logo se soube que Roberto Marinho seria o novo dire­tor. Foi um escândalo. E os velhos profissionais não sabiam qual era pior para O Globo, se a morte de Euricles, se a direção de Roberto.
Hoje, os jornais têm toda uma rapaziada nova e irresistí­vel. Meninas de dezesseis anos fazem estágio nas redações. Na­quele tempo, não. Bem me lembro de uma vez em que fui a O Globo, ainda em vida de Euricles. Lá não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa figura trêmula e nostálgica. Era a geração ainda da vacina obrigatória, da primeira batalha do Marne. O próprio Euricles estava ali como um sobrevivente dos velhos tempos. E Roberto? Que vinha ele fazer com a sua ultrajante vitalidade? Muitos daqueles homens o tinham carre­gado no colo. E eis que o antigo garoto punha-se a dar ordens, a visar matérias.
No tempo de Euricles, nenhum Marinho tinha autoridade para tirar uma cadeira do lugar. E as virtudes possíveis e impre­visíveis de Roberto estavam inéditas. Sabia-se que freqüentava o Boqueirão e lá remava; que, ainda no Boqueirão, treinava bo­xe com o fotógrafo Moacir Marinho, seu primo; era visto guian­do automóveis, em disparadas suicidas. Bem. Para diretor de um jornal grave, como era O Globo, tais dados biográficos pro­metiam pouco.
Fosse como fosse Roberto Marinho significava para nós uma esperança viva. Ao bater estas notas, não me lembro se foi ele que nos chamou ou se fomos nós que aparecemos lá, oferecen­do o nosso trabalho. O certo é que o meu irmão Mário Filho interessava a O Globo. Eu me lembro da nossa primeira con­versa, na rua Almirante Barroso, na porta dos fundos do jornal.
Em pé, na calçada, depois do expediente, Roberto expli­cou o seu papel. No Globo, ninguém cuidava de espanar o pó do tempo, o pó que, desde A Noite, cada geração legava à gera­ção seguinte. Ele estava disposto justamente a usar o espanador. Mas sem assombrar os redatores antigos. Queria também mudar, sem choque e gradualmente, a página de futebol. Mas confessou que tinha medo dos nossos exageros. Disse mesmo: — “Vocês, um dia, puseram a fotografia de Jaguaré no penico”.
Não era verdade, claro. Puro folclore. Em suma: — queria ele que Mário começasse a trabalhar imediatamente. Saímos, de lá, numa gratidão selvagem. Mário era casado, mas combinou com a mulher o seguinte: — enquanto os irmãos não se empre­gassem, ele daria à minha mãe todo o ordenado de O Globo. No dia seguinte, tivemos um encontro com Costa Soares, que vinha combinar tudo, em nome de Roberto Marinho. Ficou as­sentado que, para dirigir a página de esporte de O Globo, Mário ganharia 550 mil-réis mensais. Para a época, era um salário de primeiríssima ordem.
Eu não ganhava um tostão e continuava desempregado. Mas, para ajudar meu irmão, passei a trabalhar como qualquer funcionário de O Globo e mais que qualquer funcionário de O Globo. Chegávamos eu e o Mário às sete da manhã; e saíamos às cinco da tarde. Eu estava curioso de ver o comportamento de Roberto como diretor.
Já contei o desabafo ressentido de Eloy Pontes. “Ganha mais do que eu! Mais do que eu!”, dizia ele. Na sua opinião, Roberto era um cretino. Outros colegas falavam na “besta do Roberto”. Na própria redação de O Globo, homens e até móveis, até reló­gios amavam a rotina de Euricles, que era, exatamente, o homem de rotina. Roberto ameaçava posições e hábitos mumificados. Mas eu veria, com o tempo, que ele potencializava e salvava O Globo.
Um ano depois, comecei a ganhar. Eis o meu primeiro or­denado: — duzentos mil-réis. E, então, aconteceu esta coisa prodigiosa: — enquanto não recebi um tostão, era gratíssimo a Roberto. Tinha-lhe afeto: olhava-o como a um irmão. Mas, re­munerado, passei a olhar com ressentimento, despeito, o jovem diretor. Foi aí que eu aprendi que os sentimentos fortes, como a ira, o ódio, a inveja, exigem um salário.

Nenhum comentário: