Roberto Marinho estava me pagando duzentos mil-réis por mês. E entrei na folha, como redator esportivo de O Globo. Mas a minha fome continuou, eis a verdade, minha fome continuou. Só almoçava de vez em quando, só jantava de vez em quando. Todo o dinheiro que recebia, deixava em casa. De manhã, na hora de sair, minha mãe dava o dinheiro do bonde e só.
“Minha fome continuou”, disse eu. E já retifico: nem tanto, nem tanto. Pelo menos, tomava o café da manhã, com pão e manteiga. E, em certos dias, ousava um vale de dois mil-réis, que Roberto visava, e ia apanhar o dinheiro no caixa. Com dois mil-réis almoçava no Reis. Meia porção custava 1200 réis; pão, duzentos réis; banana, gorjeta e ainda me sobravam dois tostões.
Entre parênteses, no tempo do desemprego e, portanto, da fome maciça, compacta, tinha as minhas compensações. Ia para a praça Mauá ou praça Quinze; e a minha alegria era passar horas olhando e só olhando. Esse prazer visual, intensíssimo, me fazia esquecer de mim mesmo. Lembro-me de que, certa vez, na praça Quinze, fiquei espiando uma tangerina que boiava. Para mim, eis a questão: — por que não afundava a tangerina?
Ao mesmo tempo, me pergunto: — vi mesmo essa tangerina boiando no mar da praça Quinze? Já não sei, porque a fome é, por vezes, delirante. Naquele época, as coisas, as pessoas e mesmo as palavras tinham, em certos momentos, um halo intenso e lívido. Outras vezes, ficava passando a mão na barriga, como se pudesse prender a náusea. Mas vomitar o que não comera?
Um dia, eram quatro ou cinco horas da tarde, e vi uma cara surpreendente. Ou por outra: — não era bem a cara, mas o nariz inverossímil. Parecia um falso nariz, carnavalesco, de papelão. Comecei a suar de angústia. “Não estou vendo aquilo”, eis a minha certeza. Aproximei-me da pessoa. O nariz continuava como um bico encarnado, recurvo, quase obsceno. Desesperado, fui me debruçar na amurada.
Mas não disse que a minha felicidade absurda eram os barcos. Eu os via de todos os feitios, partindo, chegando ou simplesmente parados. Para mim, ainda hoje, não há nada mais bonito do que um nome de barco. Há pouco, passei na praça Mauá. Vi, encostado, um transatlântico. Olhei o nome: — Andrea Doria. Pareceu-me um nome azul, lunar e, ao mesmo tempo, ressoante como uma concha marinha.
Fecho aqui o parêntese. O que me importa, no momento, é valorizar e dramatizar o salário. Enquanto não tive ordenado, assumia, diante de Roberto Marinho, uma atitude de humildade, de subserviência. Eis a palavra e a verdade: — subserviência. Se ele me batia nas costas ou simplesmente sorria, sorria para mim, me crispava de alegria. E o pior foi quando, certa vez, no fim do expediente, ele perguntou: — “Vais pra Copacabana? Eu te levo”.
(Copacabana. Até hoje, não sei por que não saímos de lá. Minha família passava fome em Copacabana. E jamais ocorreu a um de nós mudar para o subúrbio. Podíamos morar no Méier, Encantado ou Brás de Pina. Seria tão fácil alugar uma casinha em Todos os Santos, ou em Padre Miguel. Mas nenhum de nós teve a modéstia de pensar num aluguel barato. Morríamos agarrados a Copacabana. Ou Copacabana ou Ipanema. Essa fidelidade obsessiva à praia, ao mar, à avenida Atlântica quase nos destruiu, quase.)
Realmente, ainda não ia para casa. Mas respondi, trêmulo: — “Vou sim, vou”. Saímos, lado a lado, pelo corredor ladrilhado da antiga redação (O Globo estava ali no edifício do Liceu). Meu coração batia mais forte; a felicidade, naquele momento, deu-me uma violenta dispnéia. Ele próprio guiava o automóvel. Eu ia na frente, conversando. Imaginava o momento em que, em casa, diria: — “O Roberto me deu carona”. E, de fato, ele me deixou na porta de casa. Entrei e disse, pálido: — “O Roberto me deu carona”.
E, por muito tempo, quis ao diretor de O Globo um bem enorme. Comecei a fazer o seguinte: — na hora de sair eu, na esperança de uma nova carona, ia rondá-lo. Não era a gratuidade da condução. O que queria era a companhia do diretor. Era a intimidade que ia nascendo. Outros o chamavam de “dr. Roberto” e eu de Roberto. Não invejava os seus carros, a sua casa, os seus ternos (eu tinha um terno único; usava a mesma camisa, três, quatro dias).
Não sei se isso que estou contando é ingênuo ou humilhante. E, por vezes, ao bater estas notas, me pergunto: — “Não estarei me rebaixando?”. Não, não. Assim como não me reconheço na adolescência, também não me reconheço na fome. Durante aquele período, a fome apagou minha identidade. Eu não era eu mesmo. Ou só era eu mesmo olhando os barcos e à sombra dos barcos. Tinha que ir à praça Quinze ou à praça Mauá. E, então, olhando o nome dos barcos, eu voltava a ser, por um momento, eu mesmo (estou pensando na tangerina que não se afogou).
E, súbito, comecei a ganhar de O Globo. O salário mudou tudo. Duzentos mil-réis no fim do mês. De um momento para outro, voltavam a mim os sentimentos antigos do homem. Aí aprenderia, como já disse, que o Raskolnikov exige um salário. O ódio que leva o sujeito a matar uma usurária, ou a dinamitar um czar, precisa de um ordenado. Mesmo o homicida sexual tem que ser um remunerado. Ou então não chega nem ao desejo. (Um Raskolnikov desempregado convence menos.)
Eis o que eu queria dizer e não encontrava palavras: — durante o meu desemprego e, portanto, durante a fome total, não desejei ninguém. Não pensava em mulher. De vez em quando, procuro me lembrar se, naquela fase, em algum momento daquela fase, quis alguma mulher. Não me lembro de nenhuma figura feminina, nenhuma, nenhuma. Só me lembro da minha castidade.
E, agora, o sexo, a luta de classes, o amor, o ódio, a inveja, os pecados capitais ou subsidiários trabalhavam novamente a minha carne e a minha alma. E repito: — fui, por muito tempo, uma espécie de Raskolnikov de Roberto Marinho. Odiei a sua casa, as suas varandas, os seus automóveis, os seus ternos, os seus cristais.
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