sexta-feira, 8 de maio de 2009

Capítulo 32 - A Menina sem Estrela

Roberto Marinho estava me pagando duzentos mil-réis por mês. E entrei na folha, como redator esportivo de O Globo. Mas a minha fome continuou, eis a verdade, minha fome continuou. Só almoçava de vez em quando, só jantava de vez em quando. Todo o dinheiro que recebia, deixava em casa. De manhã, na hora de sair, minha mãe dava o dinheiro do bonde e só.
“Minha fome continuou”, disse eu. E já retifico: nem tan­to, nem tanto. Pelo menos, tomava o café da manhã, com pão e manteiga. E, em certos dias, ousava um vale de dois mil-réis, que Roberto visava, e ia apanhar o dinheiro no caixa. Com dois mil-réis almoçava no Reis. Meia porção custava 1200 réis; pão, duzentos réis; banana, gorjeta e ainda me sobravam dois tostões.
Entre parênteses, no tempo do desemprego e, portanto, da fome maciça, compacta, tinha as minhas compensações. Ia pa­ra a praça Mauá ou praça Quinze; e a minha alegria era passar horas olhando e só olhando. Esse prazer visual, intensíssimo, me fazia esquecer de mim mesmo. Lembro-me de que, certa vez, na praça Quinze, fiquei espiando uma tangerina que boiava. Para mim, eis a questão: — por que não afundava a tangerina?
Ao mesmo tempo, me pergunto: — vi mesmo essa tangeri­na boiando no mar da praça Quinze? Já não sei, porque a fome é, por vezes, delirante. Naquele época, as coisas, as pessoas e mesmo as palavras tinham, em certos momentos, um halo intenso e lívido. Outras vezes, ficava passando a mão na barriga, como se pudesse prender a náusea. Mas vomitar o que não co­mera?
Um dia, eram quatro ou cinco horas da tarde, e vi uma ca­ra surpreendente. Ou por outra: — não era bem a cara, mas o nariz inverossímil. Parecia um falso nariz, carnavalesco, de pa­pelão. Comecei a suar de angústia. “Não estou vendo aquilo”, eis a minha certeza. Aproximei-me da pessoa. O nariz continuava como um bico encarnado, recurvo, quase obsceno. Desespera­do, fui me debruçar na amurada.
Mas não disse que a minha felicidade absurda eram os bar­cos. Eu os via de todos os feitios, partindo, chegando ou sim­plesmente parados. Para mim, ainda hoje, não há nada mais bo­nito do que um nome de barco. Há pouco, passei na praça Mauá. Vi, encostado, um transatlântico. Olhei o nome: — Andrea Doria. Pareceu-me um nome azul, lunar e, ao mesmo tempo, ressoante como uma concha marinha.
Fecho aqui o parêntese. O que me importa, no momento, é valorizar e dramatizar o salário. Enquanto não tive ordenado, assumia, diante de Roberto Marinho, uma atitude de humilda­de, de subserviência. Eis a palavra e a verdade: — subserviên­cia. Se ele me batia nas costas ou simplesmente sorria, sorria para mim, me crispava de alegria. E o pior foi quando, certa vez, no fim do expediente, ele perguntou: — “Vais pra Copacaba­na? Eu te levo”.
(Copacabana. Até hoje, não sei por que não saímos de lá. Minha família passava fome em Copacabana. E jamais ocorreu a um de nós mudar para o subúrbio. Podíamos morar no Méier, Encantado ou Brás de Pina. Seria tão fácil alugar uma casinha em Todos os Santos, ou em Padre Miguel. Mas nenhum de nós teve a modéstia de pensar num aluguel barato. Morríamos agar­rados a Copacabana. Ou Copacabana ou Ipanema. Essa fideli­dade obsessiva à praia, ao mar, à avenida Atlântica quase nos destruiu, quase.)
Realmente, ainda não ia para casa. Mas respondi, trêmulo: — “Vou sim, vou”. Saímos, lado a lado, pelo corredor ladrilhado da antiga redação (O Globo estava ali no edifício do Liceu). Meu coração batia mais forte; a felicidade, naquele momento, deu-me uma violenta dispnéia. Ele próprio guiava o automóvel. Eu ia na frente, conversando. Imaginava o momento em que, em casa, diria: — “O Roberto me deu carona”. E, de fato, ele me deixou na porta de casa. Entrei e disse, pálido: — “O Ro­berto me deu carona”.
E, por muito tempo, quis ao diretor de O Globo um bem enorme. Comecei a fazer o seguinte: — na hora de sair eu, na esperança de uma nova carona, ia rondá-lo. Não era a gratuida­de da condução. O que queria era a companhia do diretor. Era a intimidade que ia nascendo. Outros o chamavam de “dr. Ro­berto” e eu de Roberto. Não invejava os seus carros, a sua casa, os seus ternos (eu tinha um terno único; usava a mesma cami­sa, três, quatro dias).
Não sei se isso que estou contando é ingênuo ou humilhan­te. E, por vezes, ao bater estas notas, me pergunto: — “Não es­tarei me rebaixando?”. Não, não. Assim como não me reconheço na adolescência, também não me reconheço na fome. Durante aquele período, a fome apagou minha identidade. Eu não era eu mesmo. Ou só era eu mesmo olhando os barcos e à sombra dos barcos. Tinha que ir à praça Quinze ou à praça Mauá. E, então, olhando o nome dos barcos, eu voltava a ser, por um momento, eu mesmo (estou pensando na tangerina que não se afogou).
E, súbito, comecei a ganhar de O Globo. O salário mudou tudo. Duzentos mil-réis no fim do mês. De um momento para outro, voltavam a mim os sentimentos antigos do homem. Aí aprenderia, como já disse, que o Raskolnikov exige um salário. O ódio que leva o sujeito a matar uma usurária, ou a dinamitar um czar, precisa de um ordenado. Mesmo o homicida sexual tem que ser um remunerado. Ou então não chega nem ao desejo. (Um Raskolnikov desempregado convence menos.)
Eis o que eu queria dizer e não encontrava palavras: — du­rante o meu desemprego e, portanto, durante a fome total, não desejei ninguém. Não pensava em mulher. De vez em quando, procuro me lembrar se, naquela fase, em algum momento da­quela fase, quis alguma mulher. Não me lembro de nenhuma figura feminina, nenhuma, nenhuma. Só me lembro da minha castidade.
E, agora, o sexo, a luta de classes, o amor, o ódio, a inveja, os pecados capitais ou subsidiários trabalhavam novamente a minha carne e a minha alma. E repito: — fui, por muito tempo, uma espécie de Raskolnikov de Roberto Marinho. Odiei a sua casa, as suas varandas, os seus automóveis, os seus ternos, os seus cristais.

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