quarta-feira, 3 de junho de 2009

Capítulo 57 - A Menina sem Estrela

Eu falava no telefone com o comissário e via, no fundo da redação, o caricaturista Álvarus (na véspera Álvarus tivera um bate-boca com um repórter francês, se não me engano de Mar­selha. Discute daqui, dali, e Álvarus deu-lhe um soco na boca). Dizia o comissário: — “Vem logo. Chispa. Morreram agorinha”.
Hoje, ninguém imagina o que eram as velhas gerações ro­mânticas da imprensa. Mudaram o jornal e o leitor. No ano pas­sado, houve uma chuva inédita, uma chuva bíblica, flagelando a cidade. Desde Estácio de Sá, não víamos nada parecido. E to­do mundo morreu e desabou, e se afogou, menos o repórter. Pasmem: — “Não houve uma única baixa na reportagem. Fez-se toda a cobertura do dilúvio e ninguém ficou resfriado, nin­guém espirrou, ninguém apanhou uma reles coriza”.
Por aí se vê que há, entre a nossa imprensa moderna e o fato, uma distância fatal. O repórter age e reage como um marginal do acontecimento. Antigamente, não. Antigamente, o profissional sofria o fato na carne e na alma. Podia morrer no incêndio como um bombeiro; e, se era um naufrágio, o sujeito podia se afogar briosamente. Havia o risco e, não raro, o martírio.
Saímos dois, ou três, e mais o fotógrafo. Antes, um de nós passou na caixa e apanhou o vale do táxi. Partimos em dispara­da. Naquele tempo, ainda cultivávamos a utopia do “furo”; que­ríamos chegar antes dos outros. Mas era quase impossível “fu­rar” A Noite. Nada acontecia sem que A Noite soubesse. Alguém telefonava, avisando. Lembro-me de um sujeito que ligou para o fabuloso vespertino; e disse: — “Vou matar minha mulher. Pode vir”. Deu nome, endereço, o diabo. A reportagem che­gou quase com o primeiro tiro.
A rigor, eu, menino de treze anos, não discriminava o reles atropelamento e a grande, hierática tragédia passional. Tudo me chispava; e era como se. naqueles dias, eu estivesse descobrin­do o ser humano. Havia, porém, um acontecimento policial que me fascinava mais que os outros: — o pacto de morte. Lembro-me de que, nos meus sete aros, dois namorados se mataram nu­ma mata de Santa Teresa. E li, como um fanático, tudo o que se publicou a respeito. A polícia só descobriu o jovem casal uma semana depois da morte.
A imprensa, hoje, numa afetação de ética e bom gosto, evi­ta a fotografia de morto. Defunto só no caixão e bem vestido como um mordomo de filme policial. Em 1926, tais escrúpulos não existiam. Bem me lembro dos namorados. O jornal abria um primeiro plano das caras comidas pelos urubus. Não o fíga­do, o baço, mas a cara exatamente, a cara.
Eis o que eu queria dizer: — nascia, imediatamente, entre mim e os suicidas de amor um vínculo tão íntimo, tão sofrido, uma espécie de parentesco ardente e desesperado. Era como se eu tivesse feito a mesma coisa em vidas passadas. E assim fui para Aldeia Campista ou Andaraí. Já não me lembro se era a rua Perei­ra Nunes ou Maxwell. Em Pereira Nunes, Adolpho Bloch vivera a sua infância humilhada e ofendida; e passara fome. À noite, a rua era lívida e comprida como a ponte Buarque de Macedo. Mas como ia dizendo: — saltamos, primeiro, na porta da menina.
Já da esquina, ouvíamos gritos de mulher. Era a mãe da mor­ta, as irmãs e até vizinhas. Sempre digo que, para além da praça Saenz Peña, os mortos são muito mais chorados. E mais ainda naquele tempo. Hoje, pode-se dizer que o ataque está entre os velhos e fenecidos usos cariocas. Nem a catástrofe justifica o ataque. Ninguém tem mais clima interior para bater com a ca­beça nas paredes e agredir portas, mesas e cadeiras.
Fomos encontrar mulheres rolando por cima umas das ou­tras em ataques; e, de repente, uma solteirona (soube depois que era solteirona) entrou lá e começou a rir. Estraçalhava no ar a própria gargalhada como os pavões. Um latagão a segurou pelos pulsos. Alguém explicava: — “Histerismo! Histerismo!”. E eu, andando de um lado para outro, desatinado, tinha vonta­de de chorar também.
A pequena estava no fundo do quintal, coberta com um len­çol (enquanto não vinha o rabecão). Ouvindo aqui e ali, vizinhos, parentes, criadas, a reportagem soube de tudo. A menina parecia mais alegre do que nunca; sentou-se no colo da mãe, brincou com as irmãs. Houve um momento em que disse: — “Mamãe, se eu morrer, quero que meus vestidos fiquem para fulana”. A fulana era uma parenta pobre; não sei se prima; e, se não era parenta, era vizinha. Todos acharam graça e passou. Pouco depois, ela vai ao telefone e fala com o namorado. Sai do telefone e se tranca no quarto.
De repente, começou a gritar. Corre-corre na casa. Ela pró­pria abre a porta e passa, correndo. Ardia como uma estrela. Embebera o vestido em querosene, ou álcool, riscara o fósforo e rompera em gritos. Numa chama só, corria, tropeçando nas cadeiras. Uma tia foi buscar um cobertor ou toalha. E ela fugia, agora, pelo corredor. Foi morrer no fundo do quintal — e negra.
Agora, o pai andava pelos cômodos da casa como um de­mente; e só repetia: — “Eu vi a gordura escorrendo. A gordura escorrendo. Era minha filha”. E, então, desesperado, comecei a perguntar pelo rapaz. Contaram que os dois tinham combina­do morrer, ao mesmo tempo, cada qual na sua casa. Marcaram uma hora exata e acertaram os relógios. E, como moravam na mesma quadra, ele há de ter escutado os gritos da bem-amada, e ela os gritos do bem-amado.
Peguei uma vizinha gorda (há sempre uma vizinha gorda como uma viúva machadiana). Fiz-lhe a pergunta: — “Por quê?”. Ninguém se mata de graça, pelo puro gosto de morrer. Eu que­ria o motivo. Eis a verdade: — ninguém sabia, nem havia moti­vo. Estavam noivos e de casamento marcado. Nenhuma oposi­ção familiar, nada. Então por quê?
Quando já íamos voltar, um senhor veio cochichar para a reportagem: — “A menina era débil mental. Tinha manias”. O outro falava chiando e aos arrancos, como um asmático. Não me convenceu. Ora, isso acontecia no tempo em que Adolpho Bloch passava fome. E, agora, tantos anos depois, eu penso: — morremos tão pouco de amor, e nos matamos tão pouco de amor. Não quererá isso dizer que somos uns pobres, uns des­graçados impotentes do sentimento?

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