terça-feira, 2 de junho de 2009

Capítulo 56 - A Menina sem Estrela

Vi o repórter cobrir o rosto com uma das mãos. Escondeu-se detrás de uma palmeira, como se os automóveis, em dispara­da, pudessem vê-lo. E, ao mesmo tempo, trincava as palavras nos dentes: — “Não é nada, não é nada”. Eu, em pé, apoiado nas grades do canal, olhava para a torre da Brahma. (E há sem­pre uma estrela que sobe por trás da torre da Brahma.)
Tive asco — e nenhuma pena — daquele pranto de adulto. Ele tirava um lenço; assoava-se. E ainda o detestei mais por causa do lenço. O outro tentou um riso: — “Sou uma besta! Sou uma besta!”. Enfiou o lenço amarrotado no bolso traseiro. Tinha vin­te anos e eu era um menino. O rapaz vira-se para mim, trêmu­lo: — “Vamos embora?”. Mais adiante, tomamos o ônibus. E, então, ele me perguntou: — “Gostou da pequena?”. Seu olho era de uma humildade insuportável. Respondi, crispado: — “In­teressante”.
Talvez porque eu fosse o filho do diretor, ele insistia: — “Mas não achou formidável?”. Respondi: — “Gostei”, olhan­do para outro lado. E, porque eu não a achara formidável, o ou­tro calou-se, numa frustração cruel. De repente, me lembrei da dívida. Disse: — “Te pago amanhã”. Protestou, desesperado: — “Não tem pressa. Paga quando puder, e se quiser”. Ajuntou, sofrido: — “Você foi meu convidado”.
Saltou muito antes de mim; e continuei, sozinho, até o posto 6. Desde que deixara a mulher, estava decidido: — “Não volta­rei mais, nunca mais”. Enquanto o repórter chorava, detrás da palmeira, eu repetia para mim mesmo: — não voltar, nunca. Des­ta vez, fizera o que todos fazem. Não saíra corrido de vergo­nha. Não. E me considerava um canalha. Tinha nojo do repórter, de mim mesmo e da mulher (mais tarde, veria as ventas da mulher nas cópias de Gauguin).
No banco do ônibus, me via no pequeno quarto. Ao lado da mulher, não pensava na mulher, não, não. Não me saía da cabeça a cena do banho utópico, ideal. Imaginava a nudez molhada e as gotas deslizando por entre seios. E ao entrar em casa, naquela noi­te, eu tinha asco, não de uma mulher, mas de todas, de todas. Lembro-me da minha casa, em Joaquim Nabuco. Entrei pelo por­tão do lado; havia uma pequena rampa, que subi devagar. Nor­malmente, eu teria contornado a casa para ver se tinha luz no ba­nheiro das empregadas. Naquela noite, passei ao largo.
Minto. Fiz o caminho de sempre. Vi luz, sim, no banheiro. Mas não fui olhar, não quis olhar. E estivessem lá, amontoadas, todas as irmãs do repórter, eu não lhes daria, pelo vidro, um úni­co olhar. Entrei em casa; subi a primeira escada, apoiado no cor­rimão. E parei, de repente. Lembrei-me de que, ao me inclinar para a morena, ela fugira com o rosto, dizendo: — “Não gosto de beijo”. Seu rosto, ao dizer isso, era uma máscara vingativa.
Essa recusa que, na ocasião, mal percebera agora me fazia sofrer. Parado, no meio da escada, senti a humilhação tardia e tão funda. Ao mesmo tempo, percebi o que ainda hoje me pare­ce ser uma verdade eterna do amor: — a verdadeira posse é o beijo na boca e repito: — é o beijo na boca que faz do casal o ser único, definitivo. Tudo mais é tão secundário, tão frágil, tão irreal.
Subo a primeira escada. Ainda passei na copa e fui beber água gelada (e tive nojo da água). Comecei a subir a segunda escada. Mas ia sem pressa nenhuma de chegar ao quarto. Sabia que ia me virar horas na cama, com todas as danações da insô­nia. Chego em cima. Algo de mim morrera na rua Benedito Hipólito. Eu não seria nunca mais o mesmo. Tivera uma delícia fulminante e vil; e me vinha uma pena cruel de mim mesmo.
Fui dormir com a sensação de que um pouco de mim mor­rera no Mangue. Deixara de ser eu mesmo e começava a ser um outro. Pensei em Sônia e Raskolnikov; nenhuma voluptuosidade entre eles; até o fim do Crime e castigo os dois não têm um movimento erótico. E, como Sônia não beijava nenhum homem na boca, era a prostituta jamais possuída. Não voltar ao Man­gue, nunca mais.
No dia seguinte, vou cedo para a redação. Quando entro, vejo o Danton Jobim num canto, recortando, com a tesoura, uma fotografia. Danton com menos quarenta anos. Era grave sempre foi grave (naquele tempo, fazia versos. Escreveu, certa vez, um soneto que terminava com o velado esplendor de es­trelas mortas). Mas, como ia dizendo: - entrei e logo começo a falar, numa euforia desesperada e maligna. No meio de qua­tro ou cinco, contei tudo: — “Pequena formidável”. Virei-me para o repórter, que lia jornal num canto. Gritei-lhe: — “Vem cá, vem cá”.
O outro veio, do fundo da redação, meio atônito. Não era mais o dionisíaco canalha dos sábados. Assumia agora a sofrida humildade dos dias úteis. Explorei o seu testemunho subservien­te. Puxei-o: — “Conta aqui. Não é formidável? A tal pequena Não é? Fala, rapaz”. Ah, ele confirmaria tudo o que eu dissesse E fui mais longe: — “A zinha não queria nem receber”
Naquele momento, resolvi que, na próxima vez diria: — “Não aceitou o meu dinheiro. Faz de graça, comigo”. E ao mes­mo tempo que falava, gesticulava, eu era um observador espan­tado e infeliz de mim mesmo. Não me reconhecia nas minhas palavras e nas minhas gargalhadas. Era como se outro falasse e risse por mim. E pensava, com desesperada volúpia, nas ir­mãs do repórter e no seu banho encantado. Se alguém me vis­se, havia de pensar: — “Eis um jovem pulha”. Mas sofria eis a verdade, eu sofria.
Falei na prostituta vocacional. Eu ia conhecê-la Dois ou três dias depois, voltei. E já sabia que voltaria outras vezes, todas as vezes. Por um momento, pela tal delícia fulminante e vil, o homem mata e se mata. Assim aprendi que o homem começa a morrer na sua primeira experiência sexual.

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