Escrevi que fui, no Mangue, um menino à procura de amor. E, em seguida, na reportagem de polícia só o amor me fascinava. Lembro-me de um desastre de trem que assombrou a cidade. Morreram oitenta, cem pessoas. Quando nós, da reportagem, chegamos, muitos ainda agonizavam; e uma moça, com as duas pernas esmagadas, pedia pelo amor de Deus: — “Me matem, me matem!”. Tinha eu treze anos, ainda não completara os catorze. Via os vagões trepados uns aos outros; lá estava a locomotiva entornada. Era espantoso: — um trem cavalgando outro trem. E, ainda pior, a promiscuidade de feridos e mortos. De vez em quando, uma mão brotava das ferragens; e um repórter tropeçou numa cabeça — uma cabeça sem corpo.
Cem mortos, não sei quantos feridos. Mas faltava o amor. Houve um momento em que me encostei num poste e tranquei os lábios, crispado de náusea. Faltava o amor, disse eu. E a massa de gemidos, mutilações e agonias — me feria menos do que um simples pacto de morte. Para mim, mais patético do que cem mortos é o casal que se mata de amor e por amor.
Ainda agora, quando sei que alguém ama, simplesmente ama, paro, espantado. (Hoje, estaremos no banquete a Gilberto Amado. Os oradores vão dizer tudo, menos o que essencialmente importa: Gilberto Amado ama. Mesmo que não tivesse escrito uma linha, merecia essa homenagem e outras. É um brasileiro que chega aos oitenta anos e ama. Oitenta anos — portanto mais velho do que o século — e ama. Estamos salvos, estamos salvos. É como se Gilberto Amado amasse por todo um povo.)
Rapidamente, deixei de ser apenas o repórter do atropelamento. Escrevera sobre o pacto de Pereira Nunes uma boa meia página. Desta vez, mais seguro de mim mesmo, inundei de fantasia a matéria. Notara que, na varanda da menina, havia uma gaiola com um canário. E fiz do passarinho um personagem obsessivo da história.
Descrevi toda a cena: — a menina, em chamas, correndo pela casa, e o passarinho, na gaiola, cantando como um louco. E era um canto áspero, irado, como se o canarinho estivesse entendendo o martírio da dona. E fiz a coincidência: — enquanto a menina morria no quintal, o pássaro emudecia na gaiola.
Quase, quase matei o canário. Seria um efeito magistral. Mas como matá-lo se a rua inteira ia vê-lo, feliz, vivíssimo, cantando como nunca, na sua irresponsabilidade radiante? O bicho sobreviveu. E foi um sucesso no dia seguinte. Lembro-me de que me perguntaram muito: — “Quem escreveu a história do passarinho?”. Eu era apontado. Muitos vinham perguntar: — “Mas aquilo foi verdade mesmo?”. Respondia, cínico: — “Claro!”.
Entre parênteses, a idéia do passarinho não era lá muito original. Eu a tirara de uma velha e esquecida reportagem de Castelar de Carvalho. Anos atrás, ele cobrira um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém e a mediocridade do sinistro irritava o repórter. E, então, lembrou-se ele de inventar um passarinho. Enquanto o prédio era lambido e, depois, comido, o pássaro cantava, cantava. Não parou de cantar. Só emudeceu para morrer.
O brasileiro gosta do horror e a nossa cidade é emotiva como uma senhora gorda. A deslavada invenção de Castelar fez a massa tremer de pena e de beleza. Não se falou em outra coisa. E o Castelar, fascinado pelo próprio êxito, não pensou duas vezes: — a partir de então não fazia um incêndio sem lhe acrescentar um passarinho. Sim, um passarinho que morria cantando e repito: — que emudecia morrendo.
Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da objetividade. O repórter mente pouco, mente cada vez menos. A geração criadora de passarinhos acabou em Castelar. Eis o drama: — o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí por que a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.
Houve, naquela época, uma tragédia (nós chamávamos tragédia) que apaixonou a cidade. (Eu continuava dentro dos meus treze anos.) Um deputado, ou senador, desconfiou da mulher. Ao contrário do que pretende a ópera-bufa, o marido é o primeiro a saber, exatamente o primeiro. Antes da mãe, da sogra, do vizinho, do fornecedor — o marido sabe. Eis como o senador percebeu tudo. Uma noite, chega em casa e, como fazia sempre, inclinou-se para beijar a mulher na boca. Beijava de leve, mas nos lábios.
Muito bem. E o senador, que se julgava uma espécie de Disraeli, cumpriu o hábito doce como todos os hábitos. Aconteceu então o seguinte: — ao ser beijada, a esposa desvia ligeiramente o rosto. Em vez de oferecer a boca, deu a face. Só fora um movimento quase imperceptível. E tanto bastou para o nosso Disraeli. Pensa, imediatamente: — “Me trai”.
Senta-se para o jantar, mas já começava a sofrer. Durante a sopa, o ensopadinho, o bife, aquilo não lhe saía da cabeça. Era traído. Como, quando e com quem, não sabia, ou por outra: — ainda não sabia. “Evitou o beijo na boca”, repetia para si mesmo. O curioso é que jamais, em momento nenhum, aquela senhora tivera um gesto, ou sorriso, ou olhar suspeito. Nada. Mas o marido estava prodigiosamente certo do adultério.
E, por influência da traição hipotética, mudou até fisicamente. Em casa, mesmo de pijama, parecia estar de sobrecasaca. De vez em quando, parava, ereto, perfilado, como se ouvisse o Hino Nacional. E, com essa desesperada pose, ele se compensava da vergonha e do ridículo. Começou a vigiar os passos da mulher, a espreitá-la. Até que, um dia, a viu entrar numa porta. Prédio de três andares, com uma sorveteria embaixo. Por uma dessas intuições exatas e fulminantes, achou que ela ia pecar no terceiro andar e não no segundo ou no primeiro. Como sofria do coração, subiu devagar as escadas, descansando de três em três ou de quatro em quatro degraus. Ainda ficou um momento, junto à porta, preocupado com os arrancos cardíacos. E foi então que veio, lá de dentro, um som abominabilíssimo: — era o riso da mulher, riso agudo, cantante, de soprano.
O nosso Disraeli chegara a duvidar. Era velho e os velhos perdoam. Mas o som o enfureceu. Puxa o revólver e faz saltar, à bala, a fechadura. Em seguida, invade o quarto. O amante se enfiou debaixo da cama. Mas a adúltera, mais ágil, mais elástica, mais acrobática, quase alada, teve tempo de se atirar do alto do terceiro andar. Por aí se vê que ela pecava por sexo e não por amor. O sexo corre e sobrevive. E se fosse amor, ela se deixaria varar de balas como uma santa; e ainda morreria agradecida.
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