sexta-feira, 5 de junho de 2009

Capítulo 59 - A Menina sem Estrela

Escrevi que fui, no Mangue, um menino à procura de amor. E, em seguida, na reportagem de polícia só o amor me fascina­va. Lembro-me de um desastre de trem que assombrou a cida­de. Morreram oitenta, cem pessoas. Quando nós, da reportagem, chegamos, muitos ainda agonizavam; e uma moça, com as duas pernas esmagadas, pedia pelo amor de Deus: — “Me matem, me matem!”. Tinha eu treze anos, ainda não completa­ra os catorze. Via os vagões trepados uns aos outros; lá estava a locomotiva entornada. Era espantoso: — um trem cavalgan­do outro trem. E, ainda pior, a promiscuidade de feridos e mor­tos. De vez em quando, uma mão brotava das ferragens; e um repórter tropeçou numa cabeça — uma cabeça sem corpo.
Cem mortos, não sei quantos feridos. Mas faltava o amor. Houve um momento em que me encostei num poste e tranquei os lábios, crispado de náusea. Faltava o amor, disse eu. E a mas­sa de gemidos, mutilações e agonias — me feria menos do que um simples pacto de morte. Para mim, mais patético do que cem mortos é o casal que se mata de amor e por amor.
Ainda agora, quando sei que alguém ama, simplesmente ama, paro, espantado. (Hoje, estaremos no banquete a Gilberto Amado. Os oradores vão dizer tudo, menos o que essencialmen­te importa: Gilberto Amado ama. Mesmo que não tivesse escri­to uma linha, merecia essa homenagem e outras. É um brasilei­ro que chega aos oitenta anos e ama. Oitenta anos — portanto mais velho do que o século — e ama. Estamos salvos, estamos salvos. É como se Gilberto Amado amasse por todo um povo.)
Rapidamente, deixei de ser apenas o repórter do atropela­mento. Escrevera sobre o pacto de Pereira Nunes uma boa meia página. Desta vez, mais seguro de mim mesmo, inundei de fan­tasia a matéria. Notara que, na varanda da menina, havia uma gaiola com um canário. E fiz do passarinho um personagem ob­sessivo da história.
Descrevi toda a cena: — a menina, em chamas, correndo pela casa, e o passarinho, na gaiola, cantando como um louco. E era um canto áspero, irado, como se o canarinho estivesse entendendo o martírio da dona. E fiz a coincidência: — enquan­to a menina morria no quintal, o pássaro emudecia na gaiola.
Quase, quase matei o canário. Seria um efeito magistral. Mas como matá-lo se a rua inteira ia vê-lo, feliz, vivíssimo, cantando como nunca, na sua irresponsabilidade radiante? O bicho sobre­viveu. E foi um sucesso no dia seguinte. Lembro-me de que me perguntaram muito: — “Quem escreveu a história do passari­nho?”. Eu era apontado. Muitos vinham perguntar: — “Mas aquilo foi verdade mesmo?”. Respondia, cínico: — “Claro!”.
Entre parênteses, a idéia do passarinho não era lá muito ori­ginal. Eu a tirara de uma velha e esquecida reportagem de Castelar de Carvalho. Anos atrás, ele cobrira um incêndio. Mas o fogo não matara ninguém e a mediocridade do sinistro irritava o repórter. E, então, lembrou-se ele de inventar um passarinho. Enquanto o prédio era lambido e, depois, comido, o pássaro can­tava, cantava. Não parou de cantar. Só emudeceu para morrer.
O brasileiro gosta do horror e a nossa cidade é emotiva co­mo uma senhora gorda. A deslavada invenção de Castelar fez a massa tremer de pena e de beleza. Não se falou em outra coi­sa. E o Castelar, fascinado pelo próprio êxito, não pensou duas vezes: — a partir de então não fazia um incêndio sem lhe acres­centar um passarinho. Sim, um passarinho que morria cantan­do e repito: — que emudecia morrendo.
Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas da ob­jetividade. O repórter mente pouco, mente cada vez menos. A geração criadora de passarinhos acabou em Castelar. Eis o dra­ma: — o passarinho foi substituído pela veracidade que, como se sabe, canta muito menos. Daí por que a maioria foge para a televisão. A novela dá de comer à nossa fome de mentira.
Houve, naquela época, uma tragédia (nós chamávamos tra­gédia) que apaixonou a cidade. (Eu continuava dentro dos meus treze anos.) Um deputado, ou senador, desconfiou da mulher. Ao contrário do que pretende a ópera-bufa, o marido é o pri­meiro a saber, exatamente o primeiro. Antes da mãe, da sogra, do vizinho, do fornecedor — o marido sabe. Eis como o sena­dor percebeu tudo. Uma noite, chega em casa e, como fazia sem­pre, inclinou-se para beijar a mulher na boca. Beijava de leve, mas nos lábios.
Muito bem. E o senador, que se julgava uma espécie de Disraeli, cumpriu o hábito doce como todos os hábitos. Aconte­ceu então o seguinte: — ao ser beijada, a esposa desvia ligeira­mente o rosto. Em vez de oferecer a boca, deu a face. Só fora um movimento quase imperceptível. E tanto bastou para o nosso Disraeli. Pensa, imediatamente: — “Me trai”.
Senta-se para o jantar, mas já começava a sofrer. Durante a sopa, o ensopadinho, o bife, aquilo não lhe saía da cabeça. Era traído. Como, quando e com quem, não sabia, ou por ou­tra: — ainda não sabia. “Evitou o beijo na boca”, repetia para si mesmo. O curioso é que jamais, em momento nenhum, aquela senhora tivera um gesto, ou sorriso, ou olhar suspeito. Nada. Mas o marido estava prodigiosamente certo do adultério.
E, por influência da traição hipotética, mudou até fisicamen­te. Em casa, mesmo de pijama, parecia estar de sobrecasaca. De vez em quando, parava, ereto, perfilado, como se ouvisse o Hi­no Nacional. E, com essa desesperada pose, ele se compensava da vergonha e do ridículo. Começou a vigiar os passos da mu­lher, a espreitá-la. Até que, um dia, a viu entrar numa porta. Pré­dio de três andares, com uma sorveteria embaixo. Por uma des­sas intuições exatas e fulminantes, achou que ela ia pecar no terceiro andar e não no segundo ou no primeiro. Como sofria do coração, subiu devagar as escadas, descansando de três em três ou de quatro em quatro degraus. Ainda ficou um momen­to, junto à porta, preocupado com os arrancos cardíacos. E foi então que veio, lá de dentro, um som abominabilíssimo: — era o riso da mulher, riso agudo, cantante, de soprano.
O nosso Disraeli chegara a duvidar. Era velho e os velhos perdoam. Mas o som o enfureceu. Puxa o revólver e faz saltar, à bala, a fechadura. Em seguida, invade o quarto. O amante se enfiou debaixo da cama. Mas a adúltera, mais ágil, mais elástica, mais acrobática, quase alada, teve tempo de se atirar do alto do terceiro andar. Por aí se vê que ela pecava por sexo e não por amor. O sexo corre e sobrevive. E se fosse amor, ela se deixaria varar de balas como uma santa; e ainda morreria agradecida.

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