sábado, 6 de junho de 2009

Capítulo 60 - A Menina sem Estrela

Terminei o capítulo com a adúltera pulando pela janela. Era na cidade, dia útil, hora de movimento. Se me perguntarem se ela morreu, eu lembrarei Machado de Assis. Segundo este, é me­lhor cair das nuvens do que de um terceiro andar. Pois a infiel caiu de um terceiro andar em cima de um toldo. Foi um assom­bro na rua. De repente, todos viram aquela mulher voar pela janela, virar duas cambalhotas e derramar-se dois andares abaixo.
E vinha de camisola, aí é que está, vinha de camisola. Ho­je, não há nada mais intranscendente do que o ato de se despir. A mulher faz dois ou três gestos e a nudez brota, instantânea. Se, em nossos dias, uma senhora cair de um terceiro andar e de camisola — será um escândalo total. Todos hão de pergun­tar, numa amarga perplexidade: — “Por que a camisola?”. Na­quele tempo, o pudor era obrigatório no jogo amoroso e entra­va nas devassidões mais frenéticas.
Era uma senhora gorda, e, portanto, de uma beleza um tanto pesada. Tinha os flancos fortes, potentes de fecundidade. E, to­davia, o toldo suportou o baque e não houve morte, nem fratu­ra, nada. A adúltera foi recolhida, salva. Alguém lhe deu uma capa, que ela vestiu por cima da camisola. Quanto ao amante, nós o deixamos debaixo da cama. No quarto, está um marido armado e homicida. A adúltera saíra pela sacada e o amante de­via ser a vítima obrigatória.
E, no entanto, aconteceu o seguinte: — a partir do momento em que mulher se atirou de cabeça, o amante passou a ser um pobre-diabo secundário, irrelevante e, eu diria mesmo, inexis­tente. O nosso Disraeli foi na sacada espiar o resultado da que­da. Do alto, viu a mulher, de camisola, esperneando em cima do toldo. E voou pelas escadas. O que houve depois qualquer um pode imaginar. O amante saiu, de gatinhas, vestiu-se, calçou-se, pôs o chapéu, desceu e sumiu, para sempre. Não deixou, atrás de si, um vestígio de identidade. Até hoje, ninguém sabe quem foi esse único e escasso amante, como era, qual o feitio do seu nariz, o número do seu sapato ou se usava pérola na gravata.
Dois ou três latagões retiraram a adúltera do toldo. Rouca de pavor, só dizia: — “Ele quer me matar! Ele quer me matar!”. Perguntaram: — “Quem? Quem?”. Disse: — “Meu marido”. E era uma menina de medo: — “Não quero morrer! Não quero morrer!”. Eis que surge, ali, o marido, arquejante. Ainda empu­nhava o revólver, mas era evidente que passara toda e qualquer intenção agressiva. Passa a outro a arma. Em seguida, ele se lan­çou nos braços da mulher, ela nos dele, os dois aos soluços.
Esse perdão fulminante causou, entre os presentes, um es­cândalo mudo. O senador (ou talvez deputado) não teve uma palavra dura, nada. Ela é que, atracada ao marido, gemia: — “Vo­cê me perdoa? Perdoa?”. O outro retrucou, nobremente: — “O que passou, passou”. O pior foi quando os dois embarcaram num táxi. Juntara gente e nós sabemos que o povo não enten­de o perdão e prefere o tiro. O casal partiu debaixo de uma vaia triunfal.
Disse eu que, num fim de certo tempo, o repórter de polícia adquire uma experiência de Balzac. Com um ano de atividade profissional eu conhecera todas as danações do homem e da mu­lher (é forte dizer “todas”, mas vá lá). E, sobretudo, tinha um prodigioso elenco de adúlteras. Sempre que, na reportagem de polícia, cruzava com uma infiel, eu me perguntava: — “Porquê?”. E ia com uma tenaz e não sei se compadecida ou perversa curio­sidade — apurando todas as causas de adultério.
Umas traíam por vingança, outras por passatempo, ou té­dio, ou experiência erótica, ou dinheiro. Uma pequena e seletíssima minoria era infiel por amor. Eis o que aprendi lidando com o sangue e excremento da crônica policial: — o marido enganado perdoa muito menos o adultério por amor. Se a mu­lher vive uma aventura estritamente física, carnal, se trai por um, digamos assim, capricho erótico, ele sofrerá menos. Mas o amor ofende, agride muito mais.
Ainda no meu primeiro ano de repórter de polícia, traba­lhei num caso que me empolgou. Imaginem vocês um rapaz e uma menina que se casam, ela com dezesseis, ele com dezoito anos. Já pelas duas idades, percebemos que tal casamento fra­cassou na primeira noite e não poderia nem ter lua-de-mel. A mulher pode ter qualquer idade. Não o homem. O homem não pode ter dezoito anos, ou quinze. Aos dezoito anos, não sabe­mos nem como se diz “bom dia” a uma mulher e não podemos fazê-la feliz, em hipótese nenhuma. Para o homem, o amor não é gênio, não é talento, e sim tempo, métier, sabedoria adquiri­da. Fiz as considerações acima para concluir: — o homem de­via nascer com trinta anos feitos.
O amor do adolescente casal morreu na primeira noite. No dia seguinte, bem cedinho, a menina queria voltar para a casa dos pais. Claro que a mãe de um lado, a sogra de outro, e o pai servindo de coadjuvante, impediram a separação. Dois dias de­pois, segundo o testemunho dos vizinhos, ela já estava flertan­do com um, com outro. Moravam na rua Barão de Bom Retiro. E contam que, ainda não fizera um mês de casada, e já atirava beijos para os desconhecidos que passavam no bonde. Mais um pouco e tinha o primeiro amante. E os outros viriam, às dúzias.
Passou de mão em mão e sem gostar de ninguém. O mari­do soube, a mãe, o pai, a sogra, todos souberam. Mas a própria abundância quantitativa era uma espécie de desculpa: — se ti­nha tantos, não havia amor. E só uma coisa horrorizava os vizinhos, os conhecidos: — o marido manso, que ia para a sinuca, enquanto a mulher o traía até com desconhecidos.
De repente, ela mudou. Começou a ficar triste, não ria al­to, nem atirava beijos aos homens dos bondes e dos automó­veis. Deixou de se pintar. Uma noite, vira-se para o marido: “Ou você dorme na sala ou eu”. O outro não entendeu nada. Passou a dormir na sala. E começou a ter um pudor feroz do marido. Até que, num final de tarde, foi vista, não sei onde, passeando com um desconhecido, de mãos dadas. E tudo ficou espanto­samente claro. Era agora a mulher de um homem só. Amava. E porque era amor, houve ódio do marido, da sogra, dos cunha­dos. O ser amado era já um senhor, grisalho e triste. E, então, a sogra passou a telefonar; e dizia-lhe palavrões. E, uma noite, estava sentada diante do espelho, pondo papelotes no cabelo. Súbito, o marido puxa o revólver. Ela não fugiu, nem gritou. Nenhum medo. Ainda o desafiou: — “Atira”. O outro puxou o gatilho três vezes. A menina crispou-se por um momento. Depois, a cabeça tombou; e quando os outros entraram, ela estava quieta na sua morte, pendida de sonho.

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