Sento-me para escrever e vem, de fora, pela janela, a nostalgia da rua Alegre. Eis a verdade: — sou, antes de tudo, a rua Alegre. Não Olinda, não Tijuca, ou Copacabana, mas rua Alegre. E foi lá que, aos seis anos, tornei-me testemunha ocular e auditiva de uma cena desesperadora. O episódio ocorreu depois de um Carnaval. Estávamos em mil novecentos e vinte e poucos. E o Carnaval antigo era a mais lúgubre das festas.
(Quem olhasse as nossas fantasias havia de imaginar que o carioca é um defunto vocacional. E, realmente, a caveira era a máscara de toda uma cidade. Ainda hoje, pensando na minha infância, me pergunto se não será a morte a paixão mais sentida do brasileiro.) Mas como ia dizendo: — perto da nossa casa, morava a família de um funcionário dos Correios e Telégrafos. E eu não saía de lá.
Uma tarde, vejo um hediondo bate-boca entre o funcionário e a sogra. Ela, gorda, com gazes enroladas nas varizes das canelas; ele, magro, peito fundo de asmático. Discutem, não sei por que, e, de repente, ela o vara com o insulto: — “Canalha! Canalha!”. Eu não sabia direito o que era canalha. Bem me lembro: — o dono da casa recua, lívido, já com dispnéia. Desabou numa cadeira, enfia a cara nas duas mãos e começa a chorar.
O filho da vítima, um garoto da minha idade, fugiu para o fundo do quintal. Eu, não: continuei ali, fascinado. Todavia, o importante para mim não era o choro do adulto, nem as varizes da sogra, nem o dano moral do funcionário. O importante, repito, era a palavra inédita. Sim, a palavra que eu ouvia pela primeira vez e que me feria para sempre. Aquilo não me saía da cabeça: — canalha, canalha.
O sentido era obscuro. Mas a palavra valia pelo simples som, e por uma espécie de halo e, mais, pela íntima ferocidade. Daí por diante, aquele homem deixou de ser alguém. Não era um funcionário, ou um vizinho, ou um velho. Era uma palavra, ou, melhor dizendo, era “o canalha”. Claro que sogra e genro fizeram as pazes dois ou três dias depois. E o vi dizendo, num gesto largo, que começou no chão e chegou ao teto: — “Uma santa, uma santa”.
Até que o canalha morreu. Fui lá. Eis a verdade: — a partir dos seis, sete anos, não perdia um enterro de vizinho. Pequenino e cabeçudo como um anão de Velásquez, metia-me no velório; e ficava, de longe, espiando o morto, enquanto ardia, no alto, a chama tão fiel e tão compadecida dos círios. Mas o que me deslumbrava, ainda, não era a morte, era a palavra. A sogra chorava mais do que a esposa. E o som cruel me perseguia, sempre o mesmo: — canalha, canalha.
E passou o tempo. Saímos de Aldeia Campista para Tijuca e desta para Copacabana. Ah, Copacabana em 1923, 1924, era docemente residencial como o Botafogo de Machado de Assis. E, um dia, sou convidado para fazer alpinismo. Um grupo de rapazes e moças ia escalar o Dedo de Deus. Confesso, relutei a princípio; sempre achei o alpinismo vagamente idiota, e ainda mais o alpinismo brasileiro. Mas tanto insistiram que cedi.
Era um domingo parnasiano, de um azul quase insuportável. Sempre me parecera que as cores brasileiras não têm caráter. O azul brasileiro não é bem azul; e assim o amarelo, o verde, o roxo. Tudo manchado. Naquele dia, não. Cores violentas, passionais. E, de repente, brota um desconhecido na excursão. De onde saíra, quem era, como se chamava, eis as perguntas que fazíamos sem lhes achar a resposta. Eu disse “desconhecido”, mas já retifico: — menos para mim. E, de fato, eu já vira aquela cara não sabia onde, nem quando. Súbito, uma luz baixa em mim e me lembro: — era meu vizinho de infância e, pior, filho do canalha.
Eis o que eu pensava: — filho do canalha e, por morte do pai, canalha também. Desde o primeiro momento, ele conquistara, de assalto, a intimidade das meninas e dos rapazes. Era um desses encantos pessoais absolutos. Quando parávamos para tomar água, comer um sanduíche, ele nos divertia com um élan e um virtuosismo de profissional. Lembro que, uma vez, pôs-se de quatro na paisagem. Puxou uma laranja do bolso e a equilibrou no nariz. Sempre de gatinhas, andou circularmente. Foi um êxito desvairado. Dos presentes, um único não riu, um único não achou a menor graça! — o noivo de uma das moças, justamente a mais linda do grupo.
O canalha foi, durante a excursão, um deslumbramento. Sabia ler mão, fazer mágicas de baralho; e, em dado momento, abriu a boca e pôs um fósforo aceso em cima da língua. As meninas vinham espiar e podiam observar uma saúde dentária inexcedível, sem uma única e escassa obturação. Só o noivo, com um ciúme de ópera, de Cavalleria rusticana, continuava inconquistável. Tomava conta da noiva e rosnava a qualquer tentativa de aproximação. Seja como for, o canalha nos caíra do céu. Estávamos todos convictos de que o alpinismo era mesmo um esporte de débeis mentais. E ele nos salvava do tédio mortífero. Além de todas as outras habilidades, tinha mais uma: — cantava tangos, com um jogo cênico de Rodolfo Valentino nos Quatro cavaleiros do apocalipse.
No meio do caminho, aparece um rio lindo. E, então, num rompante de gênio, o canalha berra a idéia: — “Vamos tomar banho?”. Sucesso fulminante. Todo mundo estava neurótico de alpinismo. Num segundo, houve uma unanimidade feroz. Tudo ficou combinado: — as meninas tomariam banho num lado e os rapazes no outro. E assim se separaram os sexos.
Todos os rapazes, inclusive o noivo de ópera, retiraram-se para o trecho da paisagem que lhes competia. Tiraram a roupa e se jogaram no rio, com uma desesperada volúpia. Felizmente, o rio tinha profundidade e todo o mundo mergulhava e nadava, com uma gana paradisíaca. Súbito, o noivo lança a pergunta pânica: — “E fulano?”. Fulano era o canalha. Não estava. A hipótese do afogamento não convenceu ninguém. E, então, uma intuição bateu no noivo. Por coincidência, usou ele a palavra que assombrava minha infância: — “Canalha, ah, canalha!”.
Todos aqueles nus se juntaram na expedição punitiva. Eis a certeza que se instalara em cada um de nós: — estava espiando o banho das moças. Começou a caçada. E quando a turma chegou, rastejando, no lugar certo, alguém arriscou um olhar na direção das meninas que se banhavam, dentro da luz. E logo todos espiaram. Lá estava aquela nudez múltipla, molhada, total, A noiva do ciumento era a própria Ava Gardner aos dezessete anos. Ninguém pensou mais no canalha, ninguém. Cada qual se pendurou no seu galho e ficou olhando, como um sátiro esplêndido.
Depois, as meninas saíram, enxugaram a nudez, puseram a roupa. E, então, os rapazes, com o noivo à frente, saíram atrás do canalha. Justamente, vinha descendo de sua árvore; e seu olhar ainda vazava luz. Levou uma surra medonha. Quase o mataram.
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