segunda-feira, 15 de junho de 2009

Capítulo 69 - A Menina sem Estrela

Já disse e aqui repito: — o episódio da véspera é tão passa­do, e passado tão defunto como a vacina obrigatória. Faço esta ressalva para incluir, nestas Memórias, o meu almoço de on­tem com o Otto Lara Resende. Tudo aconteceu, ali, num restaurante amigo da rua Santa Clara. Éramos cinco: — o Otto, eu, meu filho Joffre, o Hélio Pellegrino e o Vinícius de Moraes.
O almoço foi uma página de Os Maias. Não era um Otto qualquer que estava diante de nós, mas um Otto recém-chegado. E aquele que chega é sempre um ser comovido e transcenden­te. Vinha ele da fabulosa Escandinávia; andara no pólo, vejam vocês, no pólo; passara três ou quatro dias em Paris (não fale­mos de Paris, que é um lugar-comum irrespirável).
Como o Otto vivera uma experiência polar, nós o reconhe­cemos como se fosse um Byrd, um Amundsen. Se ele saltasse de um trenó, puxado por uma dúzia de caninos brancos, não me admiraria nada. E coincidiu a chegada do Otto com a passa­gem de uma mulata grávida. Improvisou-se uma relação cine­matográfica entre as duas imagens: de um lado, a mulata com os flancos plenos, saturados de vida fecunda; de outro lado, o escritor, prenhe também de experiências, descobertas, espan­tos, visões. Houve um momento em que me veio a tentação fa­tal de perguntar-lhe: — “O pólo existe mesmo?”.
Vocês se lembram dos Sertões, quando Euclides diz que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Foi mais ou menos assim, com esse tom euclidiano, que o Otto declarou o seguinte: — “O norueguês é um bobo”. Mas não vejam, aí, nenhuma inten­ção restritiva. Em absoluto. O que ele quis dizer, se bem o en­tendi, é que falta ao norueguês a luminosidade da molecagem brasileira. Por toda a Escandinávia, não ouviu ele uma única e escassa piada. E como pode um povo viver, e sobreviver, sem piada?
Otto desembarcara em Olso e quinze minutos depois, não mais, já bocejava num tédio de Negro de Cecil B. de Mille. Du­rante os dias que lá permaneceu, não foi olhado por ninguém, jamais. O brasileiro tem por tudo um entusiasmo visual que não existe na Escandinávia. Lá as pessoas olham pouco. E, por ve­zes, o Otto perdia a noção da própria identidade. Na emergên­cia, puxava a carteirinha do Félix Pacheco, via a própria cara e repassava o próprio nome. E, então, certo de que continuava sendo Otto Lara Resende, de São João del Rey, suspirava: — “Ainda, bem, ainda bem”.
Mas o Otto que partiu era um e o Otto que voltou é outro. Na sua viagem, aprendeu esta coisa estarrecedora: — “O desen­volvimento não é solução”. Ao sair do Brasil, era um paladino do desenvolvimento, disposto a atirar o seu dardo contra a soldadesca inimiga. Mas salta na Noruega, o país mais desenvolvido do mundo, e percebe todo o seu equívoco funesto. Imaginem que entra numa fábrica. Ele e seus companheiros são conduzi­dos por um funcionário norueguês, que é um bobo integral, de uma polidez hedionda. Cada operário, ali, tinha um automóvel. Era de uma espessa, inconsolável tristeza.
Sem ser olhado por ninguém (nenhum operário lhe conce­deu a graça de um olhar), o Otto foi varado por uma certeza inapelável: — o desenvolvimento humaniza a máquina e maquiniza o homem. O escritor patrício teve vontade de conver­sar com as máquinas e de lubrificar as pessoas. E baixou-lhe uma náusea total das novas técnicas. Viu uma máquina de fazer em­brulhos que o deslumbrou. Visitou outras fábricas. Em todas, o mesmo operário inverossímil. Não havia a menor dúvida: — na Escandinávia as máquinas são mais tratáveis, mais sensíveis, mais inteligentes, de uma sociabilidade muito mais fina do que as pessoas.
E ele, só pensando na volta, continuou somando dados so­bre o desenvolvimento. Outra descoberta: — não há mulher bo­nita no país desenvolvido. Pode parecer mentira: — não há. E o Otto explica:— a beleza tem de ser uma exceção. A partir do momento em que todos são bonitos, ninguém é bonito. A norueguesa é sempre igual à outra norueguesa. Os noruegueses são parecidos entre si como soldadinhos de chumbo. E olhando para todos os lados, e não vendo um único bucho, o Otto começou a sentir um absurdo tédio visual.
Como se não bastasse a padronização de caras, corpos, cos­tumes, usos, idéias, valores, há também a estandardização da paisagem. Tudo prodigiosamente igual. Aquele que viu uma pai­sagem norueguesa pode ir tratar da vida, porque já conhece to­das as outras paisagens. É trágica a falta de imaginação da paisa­gem no país desenvolvido.
E há tanta ordem, tanto asseio, tanta disciplina, tanta orga­nização de vida, que o Otto compreendeu por que o escandi­navo se mata. Ao apertar a mão de um norueguês tinha vontade de perguntar-lhe: — “Quando é o suicídio?”. Quanto a amar, o que se vê é um amor sem mistério, suspense, angústia e abra­ços sem um mínimo de morbidez. Ora, sem um mínimo de mor­bidez, ninguém consegue gostar de ninguém. O amor ou é pu­ro desejo ou, menos do que isso, a posse sem desejo.
Em plena Oslo, o Otto experimentou uma dilacerada nostal­gia do subdesenvolvimento brasileiro. Revirava-se, insone, na ca­ma, pensando no Ponto de 100 Réis, nos oitis do Boulevard (não há mais oitis no Boulevard, mas ele queria vê-los assim mesmo).
Tinha saudade até dos gatos vadios do Campo de Santana. Ainda por cima, estava gripado. Só o brasileiro tem a desfaça­tez de ir ao pólo gripado.
Finalmente, tomou o avião de volta. Desceu em Paris e achou Paris abominável. Passou, lá, uma tarde inteira, fazendo a seguinte e desesperadora constatação: — todo mundo usava o mesmo sapato. Fosse como fosse, descobrira que o desenvol­vimento é burro. Ao passo que o subdesenvolvimento pode ten­tar um livre, desesperado, exclusivo projeto de vida. O desen­volvido para se realizar tem que ser o suicida.
O Otto desembarca aqui, finalmente. Entre parênteses, de­vo dizer que não incluí o seu nome na lista dos meus amigos. Mas ele o é. Por ressentimento eu o excluí. Mas é, repito, meu amigo. E como ia dizendo: — o Otto salta e cruza com um vago conhecido. O sujeito abre-lhe os braços, num berro: — “Otto, meu amor!”. Foi um abraço tremendo, de meia hora. Nem era conhecido, ou por outra: — o sujeito só o conhecia de televi­são. O recém-chegado viu, nessa cordialidade ululante, o Bra­sil. Np país desenvolvido, tal efusão seria considerada deslavada pederastia. Almoçando na rua Santa Clara, o meu amigo contou-me essas e outras passagens que não posso referir. Eis o vaticínio do Otto: — as máquinas norueguesas, de tão humanizadas, acabarão dando bananas em todas as direções.

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