quinta-feira, 18 de junho de 2009

Capítulo 72 - A Menina sem Estrela

Numa de minhas peças, diz um personagem que usamos, na Terra, um falso nome e uma falsa cara. Vejam bem: — nem a cara, nem o nome têm nada a ver com a nossa identidade pro­funda. E, quase sempre, o homem nasce, vive e morre sem ter contemplado jamais o seu rosto verdadeiro e sem ter jamais co­nhecido o seu nome eterno. Por isso, direi que o Maracanã é quase um milagre.
O Maracanã jamais foi Maracanã. Ou por outra: — como acontece com os homens, o estádio também recebeu um nome errado. E foi preciso que Mário Filho morresse, de repente, nu­ma madrugada de setembro, para que todos percebessem a ver­dade jamais desconfiada. O Maracanã era Mário Filho e não Ma­racanã. E devia ter-se chamado Mário Filho antes da primeira estaca e quando era apenas um sonho riscado num papel.
Sempre que penso em meu irmão Mário Filho é como se ele morresse de novo. Tudo aconteceu de repente, na madru­gada. Célia liga para minha irmã médica, Stella. O próprio Mário fala: — “Stella, essa dor que eu estou sentindo no braço não pode ser normal. Não é normal”. Stella, que não gosta de tratar de pessoas da família, disse que ia telefonar para o médico. Má­rio deixou o telefone; deitou-se de bruços. Um minuto depois não respondia mais. Estava morto.
Vejam: — morreu às quatro da manhã. Estive, no seu quar­to, da meia-noite à uma. E o que me espanta, até hoje me es­panta, é que eu não tenha percebido a morte. Sempre digo que a morte é anterior a si mesma. E Mário Filho começara a morrer muito antes. Há uma bondade de quem vai morrer, há uma lu­cidez de quem vai morrer. Lembro-me de que, nos últimos dias, foi um ser prodigiosamente bom, tão úmido de ternura, tão crispado de compaixão, e de amor estremecido.
Falei dos “últimos dias”. Mas sempre foi, desde menino, desde a rua Alegre, de uma bondade desesperadora. Bom a ca­da minuto. Bom de uma bondade que, por vezes, nos agredia e nos humilhava. E tinha a alegria de ser bom. Vejam os seus retratos: — era uma cara toda feita de alegria. Grato à vida, nunca se arrependeu de ser humano, de ser nosso semelhante (o que me está doendo, na carne e na alma, é que não dissemos tudo um ao outro. Aquele que está morrendo tem palavras extremas para dizer e palavras extremas para ouvir. Mas algo me travou a mim e a ele; tive talvez vergonha de ser meigo e calei a pala­vra do amor tão ferido).
Meu Deus, gostaria de dar uma idéia da extensão, movimen­to e profundidade de sua obra. Quem era Mário Filho? Foi um desses homens fluviais, que nascem de vez em quando. Disse “fluvial” e explico: — imaginem um rio que banhasse e fertili­zasse várias gerações. Assim foi Mário Filho. Durante quarenta anos, não houve cronista, não houve talento, vocação, em to­do o Brasil, que não tenha sido por ele fecundado.
Hoje, eu e meus colegas andamos por aí, realizados, bem-sucedidos, temos automóveis e freqüentamos boates; e o nos­so palpite tem a imodéstia de uma palavra. Mas pergunto: — o que era e como era a crônica esportiva antes de Mário Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. Sim, a crônica esportiva estava na sua pré-história, roía pedra nas cavernas. (Não exagero; vejam nas minhas palavras a simples e crassa veracida­de histórica.)
Bem me lembro do antigo cronista. Era um tipo de alto pa­tético, mais humilhado e mais ofendido do que o Marmeladov do Crime e castigo. Quando via, ou sorria, mostrava uma anto­logia de focos dentários. Era uso, então, entre os clubes, ofere­cer um lanche à crônica. Nada mais pungente e plangente do que a voracidade com que então agredíamos os biscoitos e os sanduíches. Lembro-me de um colega que agarrou pelo garga­lo, e quase esganou, uma garrafinha. Tive a sensação de que ia engolir aquilo, com chapinha e tudo, como os elefantes de circo.
Até que, um dia, surgiu Mário Filho. O cronista esportivo passa a existir, profissionalmente, a partir de sua entrevista com Marcos Mendonça. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol: meia página. E o pior era a linguagem estarrecedora. Os melhores jornalistas da época escreviam de fra­que. E Mário Filho usava a palavra viva, úmida, suada. A entre­vista de Marcos Mendonça foi, para nós, do esporte, uma Se­mana de Arte Moderna. Pouco depois, graças a Mário Filho, os clássicos e as peladas invadiram o espaço sagrado da primeira página. Antes, só o assassinato do rei de Portugal merecia man­chete. E, súbito, o grande jogo começou a aparecer, no alto da página, em oito colunas frenéticas. O cronista mudava até fisi­camente. Por outro lado, seus ternos e gravatas acompanhavam a fulminante ascensão social e econômica.
E o rio continuou o seu curso generoso, umedecendo e fe­cundando a aridez do caminho. Mas não vou contar tudo o que fez Mário Filho porque ele não parou nunca. Com seu formidá­vel élan promocional, trouxe novas massas para o futebol. A ge­ração do Maracanã não imagina como a multidão é coisa recen­te. Olhem as fotografias do Rio antigo. O brasileiro andava só, sim, o brasileiro andava desacompanhado. Quando três sujeitos se juntavam, as instituições tremiam. O público era escasso, era ralo nos velhos campos. Eis o que eu queria dizer: — Mário Fi­lho criou e dinamizou as multidões do futebol brasileiro.
Como ele recriou o Fla-Flu. Ora, o Fla-Flu, sem esta abre­viação, existia desde 1912 ou 11. E, um dia, Mário resolveu po­tencializar o velho clássico, tão velho que era anterior à primei­ra batalha do Marne. Preliminarmente, mudou o nome para Fla-Flu. Em seguida, montou um folclore fascinante sobre o jogo superconhecido e desgastado. E, de repente, o Fla-Flu extroverteu todo o patético, todo o sortilégio que trazia no ventre. O mito, por ele projetado, magnetizou todo um povo.
Mas dizia eu que o verdadeiro nome do Maracanã sempre foi Mário Filho. Nós é que éramos cegos para o óbvio ululante. Quando se pensou no estádio, nasceu uma discussão de um ab­surdo feroz: devia ser no Derby ou em Jacarepaguá? Mário Fi­lho via Jacarepaguá quase como outro país, outro idioma. O es­tádio teria de ser encravado aqui. Todas as manhãs, vinha ele, como o paladino do certo, do justo, arremessar seu dardo con­tra as hordas do erro. E assim salvou o estádio. Foi uma de suas vitórias mais lindas. Depois, lançou a Copa Rio, um aconteci­mento do futebol mundial; e faria também o Torneio Rio—São Paulo, que se transformaria no Roberto Gomes Pedrosa. Quando trouxe os remadores de Cambridge, a cidade veio para a Lagoa. Meio milhão de pessoas.
Devemos a ele os Jogos da Primavera, os jogos Infantis. Pou­co antes de morrer, deu-nos o Torneio de Pelada, empreendi­mento único no Brasil e no mundo, com mais de mil times e uma massa de 16 mil jogadores. Sempre teve a nostalgia do gi­gantesco. E era um maravilhoso escritor. Amigos, o verdadeiro rosto é o último e repito: — o rosto do morto não mente, não trai, não finge. Eu me vejo, naquela tarde, velando o seu cor­po. Debrucei-me tantas vezes sobre ele. Jamais alguém teve, em vida, um rosto tão doce, e tão compassivo, e tão irmão; e ja­mais duas mãos entrelaçadas foram tão santas.

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