sexta-feira, 19 de junho de 2009

Capítulo 73 - A Menina sem Estrela

A companhia de um paulista é a pior forma de solidão. Es­crevo isso e paro de bater à máquina. Eu queria dizer outra coi­sa e vocês vão achar graça: — acordei pensando no Eça, e não em São Paulo. Falarei do paulista, a seu tempo. Por hoje, dese­jo apenas comparar a geração portuguesa do Eça e a geração brasileira do Vianinha.
O leitor há de cair em depressão ao vislumbrar, nas minhas palavras, um desses absurdos paralelos literários. O próprio Via­ninha, ou, por extenso, o Oduvaldo Viana Filho, há de se tor­cer e retorcer, numa dessas modéstias totais: — “Mas eu não mereço tanto”, dirá ele. Mas sosseguem o leitor e o próprio Via­ninha. Não cabe nenhum paralelo e eu explico: — os Vencidos da Vida eram uma geração estrita e ferozmente literária, ao pas­so que os Falsos Cretinos são uma geração atroz e obsessiva­mente política.
Que eram o Eça, o Antero, o Ramalho, o Batalha dos Reis, o Junqueiro, o Oliveira Martins e outros, e outros, senão, e pre­cisamente, literatos? Tudo o mais era subsidiário. A política servia-lhes às frases e só. E quando Antero meteu uma bala na cabeça (e não me lembro se foi na cabeça) estava cometendo, sem o saber, o mais literário dos suicídios. Era mais um soneto.
E eu comparo os Vencidos da Vida e os Falsos Cretinos por­que são duas gerações fortemente caracterizadas e militantes. Mas deixemos os literatos portugueses que são, hoje, diáfanas e nostálgicas ossadas. Falemos dos nossos que estão aí, vivos, sólidos, vorazes e ululantes. Podemos apalpá-los, podemos farejá-los e, até, pedir-lhes dinheiro emprestado.
Imagino que o leitor há de estar fazendo a impaciente per­gunta: — por que “falsos cretinos”? Porque não o são, assim como os Vencidos da Vida também não o eram. Pode haver, aqui e ali, um ou outro caso de debilidade mental cristalina. A maioria, porém, se o quisesse, teria talento, teria imaginação, teria originalidade, teria uma enorme potência criadora. Mas sa­crifica todas essas virtudes nobres e uma pose política, socialis­ta, marxista ou que outro nome tenha.
Bem. Como dizia eu outro dia, não importa que o teatro seja político, que a poesia seja social, que o romance seja espí­rita, que a pintura seja budista, fascista ou macumbeira. Impor­ta apenas que seja bom teatro, e boa poesia, e bom romance, e boa pintura. O que interessa ao burro do leitor que Balzac se­ja integralista, se é o Balzac? Os falsos cretinos, não.
Nós os encontraremos por toda parte: — no cinema, no tea­tro, na poesia, no romance. Quando sou apresentado a um ci­neasta, tremo. Ainda ontem dizia o Otto Lara Resende: — “O cinema é uma maneira fácil de ser intelectual sem ler e sem pen­sar”. Realmente, poucos são como o Glauber Rocha, um artista desvairado, ou como Gilberto Santeiro, muito mais jovem, e de uma apaixonada sinceridade. Ou Jabor, que, na pior das hi­póteses, é uma potencialidade. Eis o que eu queria dizer: — não só o cinema dá uma carteirinha de intelectual profundo. Tam­bém o socialismo. Sim, socialismo é outra maneira facílima de ser intelectual sem ligar duas idéias. Reparem como todo idiota que se conhece é um socialista feroz.
Ninguém precisa mais escrever a Comédia humana, a Di­vina comédia, Guerra e paz, As obras completas de Shakes­peare. O artista se sente feliz e realizado de ir, ali, no Castelinho, rosnar contra os Estados Unidos e pingar duas ou três frases sobre o Vietnã. E aí está todo o “falso cretino”. Vi, há tempos, um seminário de teatro. Ao primeiro olhar, percebi um clima inequívoco de falso cretinismo. E, de fato, ergue-se um rapaz e firma o seguinte princípio: — “Teatro não interessa. O que interessa é a revolução socialista”. Ali estava a geração de que me ocupo: — o sujeito, aqui, acha que o revolucionário tem de ser, preliminarmente, débil mental de babar na gravata.
Na semana passada, passei por um boteco na rua Visconde de Pirajá. Estava lá o Vianinha tomando cerveja. (No tempo do Dumas Filho, seria absinto.) Quando o vejo, me crispo de es­panto. Que talento suicida! Que grande poeta dramático seria ele, se fosse analfabeto e apenas ditasse as suas peças. De vez em quando, ponho-me a imaginar um Vianinha utópico, ideal; um Vianinha que, ao ouvir falar em Marx, perguntasse: — “Que Marx? Joga pelo Manufatura ou pelo Rosita Sofia?”. Ah, um Via­ninha de tamanha inocência e de tão paradisíaca ignorância, se­ria o maior dramaturgo do mundo subdesenvolvido.
Em vez disso, ele e seus companheiros estão fazendo um teatro sem precedentes, desde os gregos. De vez em quando, o brasileiro abre o jornal e lê que vai ser levada a peça tal. Pro­cura o autor e tem a surpresa. É a autoria mais numerosa da Ter­ra. Por exemplo: — Onde está a saída? é assinada, se não me engano, por cinco autores. Vejam: — cinco. Um dia, teremos uma assistência de Fla-Flu escrevendo um texto dramático. E o pior é que está metido nisso um artista do valor de Ferreira Gullar.
Trabalhei com Ferreira Gullar na Manchete. Era, então, um grande poeta. Sua Luta corporal comunicou instantaneamente aos contínuos da revista. Mas o nosso Ferreira era, na época, vagamente reacionário. Depois mudou. E nós o vemos, agora, amontoado com outros, numa promiscuidade autoral inacredi­tável. Renunciou àquela solidão mais áspera do que as cerdas bravas de um javali. Deixou de ser um só. E quando o vemos, temos vontade de saudá-lo assim: — “Como vai vocês?”.
Excelente Gullar! Ainda hei de vê-lo de um reacionarismo torvo, de um obscurantismo hediondo, mas novamente gran­de poeta. E Guarnieri, o meu amigo Augusto Boal, o Flávio Ran­gel? Uma geração talvez mais brilhante do que os Vencidos da Vida. Outro dia, na casa do Otto Lara Resende, suspirava o poeta Vinícius: — “A solução é a burrice”. E ele era socialista por is­so mesmo, porque o socialismo é burro. Estavam lá o anfitrião, Otto, o Hélio Pellegrino, eu e não sei mais quem. Ninguém pro­testou. No fundo, todos, ali, pareciam achar que o bom no so­cialismo não é a justiça, não é a paz, nem os bons sentimentos — é a burrice.

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