80-26/06
Já disse que sempre um de nós, durante a madrugada, ficava junto do meu pai. Não vi, jamais, uma agonia tão mansa. Ele não sofreu em momento nenhum, como se finasse num doce e consentido martírio. Ou por outra: — só o vi crispar-se uma vez. Foi quando Sílvio Moniz fez uma punção na espinha. O médico avisara: — “Líquido róseo, mau sinal”. A agulhada feriu meu pai e tão fundo. Gemeu como um menino.
Sílvio Moniz ergueu, contra a luz, a seringa. Vimos, no vidro, o líquido róseo e translúcido. Contei que, esperando a minha hora, fora andar um pouco na calçada, de uma esquina a outra esquina. E parei um momento, olhando a casa alta e branca. E ela, assim branca e diáfana, era uma maravilhosa imitação da máscara humana.
(Até hoje, não sei por que, de repente, a casa me dava a sensação de grande, e alvo, e inescrutável rosto.) Entrei, porque chegara a minha hora. Subi a pequena rampa que dava para a garagem. E comecei a ter medo da casa. Hoje, nós moramos tão pouco e nos mudamos tanto. O sujeito passa seis meses, um ano no apartamento. Outrora, a casa era para sempre, como um túmulo. Várias gerações passavam por ela, e nela viviam, amavam e morriam.
Sim, seus quartos e salas eram cômodos metafísicos, povoados de invisíveis agonias, velórios e bodas. A nossa casa já matara Roberto; e, agora, meu pai começava a morrer. Mas, como ia dizendo: — entrei e comecei a subir a primeira escada. E, de repente, veio a fome.
Lembrei-me de que me ficara, da morte de minha irmã Dorinha, uma mágoa que ainda me fere. Era uma menina de oito meses: e, de repente, finara-se na mais leve, na mais imperceptível das agonias. Não havia então a capelinha. Armou-se o velório de anjo na sala de visitas. Rodei, pela casa, até alta madrugada. E, de repente, chegou a fome.
Eu achava que não devia comer. Tive pena, remorso, vergonha da fome. Fui beber água para enganar o estômago. E vinha para a sala espiar o sono dos círios. Saía da sala e ficava, um momento, no portão. As janelas, portas abertas, as coroas chegando. De bonde, as pessoas viam as quatro chamas e sabiam que ali morrera alguém. Mas não imaginavam que era uma menina e que não há nada mais casto que o velório de um anjo.
Dentro da noite, ouvi o primeiro canto de galo. O primeiro canto de galo errante da noite. Um crioulo, que ia passando, parou e pergunta: — “Quem morreu aí’?”. E eu: — “Uma menina”. O homem se foi. Mas eu não pensava na morte. Lembrava-me do recreio da escola pública, na rua Alegre. Eu ficava circulando, pelo pátio, e olhando as merendas das outras crianças. E nunca me esqueci — até hoje me lembro — de um sanduíche de ovo. A mãe fora levar o sanduíche ao filho. E a gema ainda escorria do pão como uma baba amarela. Tive uma inveja e tão sofrida, e tão dorida.
Junto ao portão, era no sanduíche que eu pensava. Pão com ovo. Entrei em casa. Minha irmã era, entre os círios, uma beleza em cera. Atravessei a sala, passei pela copa e entrei na cozinha. Em cima da mesa, vi um prato de sonhos. Cada sonho tinha uma franja de mel. Por um momento, resisti em desespero. Sonho, não. Se ainda fosse comida de sal. Mas não mel, não açúcar. E não resisti. Comi o primeiro sonho, e com que delícia mortal. Outro, não. E apanho o seguinte: como depressa. Não quero que alguém, entrando ali, seja testemunha da minha fome. Comi dois sonhos, sobraram outros dois. Nesses dois, não toco. São sagrados.
Muitos e muitos anos depois, vou subindo para o quarto do meu pai, e paro, um momento, na copa. E me crispei de novo, atormentado pela fome antiga. Penso se o próprio sentimento de morte não deflagra essa vontade, brutal e fatal, de comer. Comecei a me justificar: — há uma fome da angústia, uma fome da solidão, uma fome do medo. Não. Do medo, não. O medo tira a fome. A angústia, sim. A angústia dá ao homem uma fome de miserando. Mas resisti a mim mesmo. “Não vou comer nada”, decido. E subi a outra escada, tenso como se acabasse de vencer uma tentação hedionda. No quarto, pergunto a Mário Filho: — “Como vai papai?”. Mário estava maravilhado: — “Abriu os olhos e sorriu para mim”. Digo: — “Ótimo sinal! Ótimo!”. E, então, Mário saiu para dormir no quarto ao lado. Sentei-me numa extremidade da cama e fiquei olhando papai. Fumava para enganar a fome. Era, sim, a fome do desespero, da morte.
Acabei me levantando e vim para a varanda. Se meu pai abrira os olhos, reconhecera Mário e lhe sorrira, estaria, talvez, acordando do coma. Talvez não morresse. E, se morresse, teria uma coroa do presidente da República. Brigara com Washington Luís, mas fazia a campanha do Júlio Prestes. Washington Luís mandaria uma coroa. De Júlio Prestes, era certo. De Washington Luís, talvez.
E veio o sono, cruel, voluptuoso, mortal. Vontade de dormir como de morrer. Saí da varanda. Ouvia a voz do meu pai: — “Tenho sono. Meu filho morreu. Não posso ter sono”. Eu não queria dormir, nem podia dormir. Tinha que tomar conta do meu pai, tão indefeso e tão menino em seu coma. Ninguém mais frágil do que ele, ninguém mais abandonado, ninguém mais órfão. Apenas um rosto, um rosto pousado na fronha, e não crispado.
Mas eu daria tudo para dormir. E, de repente, o importante não era a morte, não era a agonia, não era a apaixonada suavidade de sua agonia. Era o sono. Caminhei no corredor e só pensava no sono. Minha vontade era chorar de sono, sair gritando de sono. Quantas horas faltam para que outro venha me substituir? Como é miserável, vil e triste ter sono diante da morte, não mais que sono.
Passo água no rosto. Odeio minha vigília. O sono é uma embriaguez. Sento-me na cama, e logo me deito, ao lado do meu pai. Penso: “Vou beijar a mão de papai”. Beijo não a mão, mas o rosto de meu pai.
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