sexta-feira, 26 de junho de 2009

Capítulo 80 - A Menina sem Estrela

80-26/06
Já disse que sempre um de nós, durante a madrugada, ficava junto do meu pai. Não vi, jamais, uma agonia tão mansa. Ele não sofreu em momento nenhum, como se finasse num doce e consentido martírio. Ou por outra: — só o vi crispar-se uma vez. Foi quando Sílvio Moniz fez uma punção na espinha. O mé­dico avisara: — “Líquido róseo, mau sinal”. A agulhada feriu meu pai e tão fundo. Gemeu como um menino.
Sílvio Moniz ergueu, contra a luz, a seringa. Vimos, no vi­dro, o líquido róseo e translúcido. Contei que, esperando a mi­nha hora, fora andar um pouco na calçada, de uma esquina a outra esquina. E parei um momento, olhando a casa alta e bran­ca. E ela, assim branca e diáfana, era uma maravilhosa imitação da máscara humana.
(Até hoje, não sei por que, de repente, a casa me dava a sensação de grande, e alvo, e inescrutável rosto.) Entrei, por­que chegara a minha hora. Subi a pequena rampa que dava pa­ra a garagem. E comecei a ter medo da casa. Hoje, nós mora­mos tão pouco e nos mudamos tanto. O sujeito passa seis meses, um ano no apartamento. Outrora, a casa era para sempre, co­mo um túmulo. Várias gerações passavam por ela, e nela viviam, amavam e morriam.
Sim, seus quartos e salas eram cômodos metafísicos, povoa­dos de invisíveis agonias, velórios e bodas. A nossa casa já ma­tara Roberto; e, agora, meu pai começava a morrer. Mas, como ia dizendo: — entrei e comecei a subir a primeira escada. E, de repente, veio a fome.
Lembrei-me de que me ficara, da morte de minha irmã Dorinha, uma mágoa que ainda me fere. Era uma menina de oito meses: e, de repente, finara-se na mais leve, na mais impercep­tível das agonias. Não havia então a capelinha. Armou-se o ve­lório de anjo na sala de visitas. Rodei, pela casa, até alta madru­gada. E, de repente, chegou a fome.
Eu achava que não devia comer. Tive pena, remorso, ver­gonha da fome. Fui beber água para enganar o estômago. E vi­nha para a sala espiar o sono dos círios. Saía da sala e ficava, um momento, no portão. As janelas, portas abertas, as coroas chegando. De bonde, as pessoas viam as quatro chamas e sa­biam que ali morrera alguém. Mas não imaginavam que era uma menina e que não há nada mais casto que o velório de um anjo.
Dentro da noite, ouvi o primeiro canto de galo. O primei­ro canto de galo errante da noite. Um crioulo, que ia passando, parou e pergunta: — “Quem morreu aí’?”. E eu: — “Uma me­nina”. O homem se foi. Mas eu não pensava na morte. Lembrava-me do recreio da escola pública, na rua Alegre. Eu ficava circu­lando, pelo pátio, e olhando as merendas das outras crianças. E nunca me esqueci — até hoje me lembro — de um sanduíche de ovo. A mãe fora levar o sanduíche ao filho. E a gema ainda escorria do pão como uma baba amarela. Tive uma inveja e tão sofrida, e tão dorida.
Junto ao portão, era no sanduíche que eu pensava. Pão com ovo. Entrei em casa. Minha irmã era, entre os círios, uma bele­za em cera. Atravessei a sala, passei pela copa e entrei na cozi­nha. Em cima da mesa, vi um prato de sonhos. Cada sonho ti­nha uma franja de mel. Por um momento, resisti em desespero. Sonho, não. Se ainda fosse comida de sal. Mas não mel, não açú­car. E não resisti. Comi o primeiro sonho, e com que delícia mortal. Outro, não. E apanho o seguinte: como depressa. Não quero que alguém, entrando ali, seja testemunha da minha fo­me. Comi dois sonhos, sobraram outros dois. Nesses dois, não toco. São sagrados.
Muitos e muitos anos depois, vou subindo para o quarto do meu pai, e paro, um momento, na copa. E me crispei de no­vo, atormentado pela fome antiga. Penso se o próprio sentimen­to de morte não deflagra essa vontade, brutal e fatal, de comer. Comecei a me justificar: — há uma fome da angústia, uma fo­me da solidão, uma fome do medo. Não. Do medo, não. O me­do tira a fome. A angústia, sim. A angústia dá ao homem uma fome de miserando. Mas resisti a mim mesmo. “Não vou comer nada”, decido. E subi a outra escada, tenso como se aca­basse de vencer uma tentação hedionda. No quarto, pergunto a Mário Filho: — “Como vai papai?”. Mário estava maravilha­do: — “Abriu os olhos e sorriu para mim”. Digo: — “Ótimo sinal! Ótimo!”. E, então, Mário saiu para dormir no quarto ao lado. Sentei-me numa extremidade da cama e fiquei olhando pa­pai. Fumava para enganar a fome. Era, sim, a fome do desespe­ro, da morte.
Acabei me levantando e vim para a varanda. Se meu pai abri­ra os olhos, reconhecera Mário e lhe sorrira, estaria, talvez, acor­dando do coma. Talvez não morresse. E, se morresse, teria uma coroa do presidente da República. Brigara com Washington Luís, mas fazia a campanha do Júlio Prestes. Washington Luís man­daria uma coroa. De Júlio Prestes, era certo. De Washington Luís, talvez.
E veio o sono, cruel, voluptuoso, mortal. Vontade de dor­mir como de morrer. Saí da varanda. Ouvia a voz do meu pai: — “Tenho sono. Meu filho morreu. Não posso ter sono”. Eu não queria dormir, nem podia dormir. Tinha que tomar conta do meu pai, tão indefeso e tão menino em seu coma. Ninguém mais frá­gil do que ele, ninguém mais abandonado, ninguém mais órfão. Apenas um rosto, um rosto pousado na fronha, e não crispado.
Mas eu daria tudo para dormir. E, de repente, o importan­te não era a morte, não era a agonia, não era a apaixonada sua­vidade de sua agonia. Era o sono. Caminhei no corredor e só pensava no sono. Minha vontade era chorar de sono, sair gri­tando de sono. Quantas horas faltam para que outro venha me substituir? Como é miserável, vil e triste ter sono diante da mor­te, não mais que sono.
Passo água no rosto. Odeio minha vigília. O sono é uma embriaguez. Sento-me na cama, e logo me deito, ao lado do meu pai. Penso: “Vou beijar a mão de papai”. Beijo não a mão, mas o rosto de meu pai.

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