79-25/06
Vocês se lembra de que, em Hamlet, acontece o seguinte: — de repente, o palco shakespeariano é invadido por um bando de comediantes. E os recém-chegados fazem piruetas, dão saltos mortais, dançam e declamam. A platéia fica atônita de beleza. É o teatro dentro do teatro, a poesia dentro da poesia, o sonho dentro do sonho.
Eis o que eu queria dizer: — nas velhas redações subdesenvolvidas, havia também uma simultaneidade igualmente mágica e igualmente fascinante. De um lado tínhamos os funcionários da casa, redatores, repórteres, contínuos; de outro lado, todo um elenco de visitantes estranhíssimos. Essas caras, que não paravam de entrar, de sair, tornavam a vida do jornal cálida como um sonho.
Quando A Manhã estava na rua Treze de Maio, vivia cheia de políticos, atrizes, camelôs, aleijados, arquitetos e prostitutas. Na redação de hoje, esta troupe seria inviável. A visita é escassa e filtrada. Ferozmente seletiva, a portaria barra o pobre-diabo, o enxota, da maneira mais ignominiosa.
Outrora era possível um demente entrar numa redação e lá permanecer como um funcionário. Lembro-me de uma velha que invadiu A Manhã e berrava: — “Eu sou a consciência da República”. E o pior é que ninguém se espantava. Um contínuo passou uma hora de grave conversa com a louca. Ela não dizia outra coisa: — “Eu sou a consciência da República”. E os mutilados, e os portadores de doenças hediondas? De vez em quando, alguém vinha me cochichar: — “Aquele é leproso”.
E, assim como na peça shakespeariana, existiam duas vidas, duas realidades na redação antiga. Certa vez, foi lá o professor Mozart. Dizia-se profeta e queria fazer milagres, apenas. De um dia para o outro, a redação virou um pátio de milagres. Paralíticos, cegos, dementes, sujeitos que ardiam em chagas. Lembro-me de uma criança que, de repente, começou a chorar, não lágrimas, mas pus. E o professor uivava para os paralíticos: — “Anda, anda! Vamos, anda!”. Eu estava lá, aterrado. E, de repente, o entrevado caminhou. Deu um passo, dois, três. Vendo o próprio milagre, o professor começou a chorar.
Numa redação, repito, entravam os tipos humanos mais inverossímeis. Até esquimó apareceu e, uma tarde, entro e quem vejo eu, em cima de uma mesa, apavorado com as caras que o cercavam? Um pingüim. Vinha do pólo, não sei de onde e estava lá. Mas como eu ia dizendo: havia uma figura obrigatória no velho jornal: — o canalha.
Até hoje, não sei por que o jornal fascinava os pulhas da velha geração. Eram escroques, punguistas, cáftens, gatunos. Todos os dias iam para a redação e se tornavam amigos, íntimos, de todos nós. De vez em quando, sumia uma capa, um relógio e já se sabia: — era um deles. E coisa curiosa. Aparentemente, os canalhas eram semelhantes, em tudo, ao homem de bem; ou por outra: — eu diria mesmo que, via de regra, eram mais doces que o homem de bem.
Três ou quatro não saíam de A Manhã. E quando meu pai fundou a Crítica, outros três ou quatro passavam o dia e a noite na Crítica. Um dia, depois do almoço, vou para a redação. Na porta encontrei o canalha. Era ali na rua do Carmo, quase esquina de Sete. Março de 1930. Getúlio, o suicida, já conspirava. Roberto morrera havia dois meses. E quando eu ria pensava em Roberto. Tinha vergonha de não sofrer como devia.
O canalha (um mulato dionisíaco) pergunta: — “Já sabe?”. Paro: — “O quê?”. E ele: — “Seu pai está doente”. Sobe comigo e vem dizendo: — “Sentiu-se mal depois do almoço”. Sinto no outro uma euforia cruel. Ligo para casa. Dizem: — “Comeu e passou mal. O Sílvio Moniz está aqui”. Desligo e começo a pensar na morte.
Venho de táxi para casa. Quando era menino, eu vivia pensando: — “Se alguém morrer na minha família, me mato”. Nas minhas meditações no fundo do quintal (sempre junto ao tanque de roupa), não queria acreditar na morte dos meus pais ou dos meus irmãos. Os outros morriam e nós jamais. Mas, se alguém tivesse de morrer, que fosse eu. Na morte de Roberto, faltou-me o fervor do menino. Pensei muitas vezes: — “Devia me matar”.
Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a verdade, não devemos sobreviver. A vida continua, mentira. Morremos com o ser amado. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo vício de viver, pelo desespero de viver.
Morávamos então na rua Joaquim Nabuco. O dr. Sílvio Moniz, clínico que nos fora recomendado por Edmundo Bittencourt, já saíra. Alguém me disse: “Derrame”. Subo para ver meu pai. Na morte de Roberto, em plena madrugada, meu pai repetia: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E, porque teve sono, ele se dilacerou de vergonha e de pena. E amou mais o filho, porque teve sono.
Meu pai estava tão quieto, e era tão manso, tão doce o seu coma. Também o amei mais porque eu não estava sofrendo, e não sentia a compaixão que queria sentir. Não voltei para o jornal. Se meu pai morresse, seria um abalo na cidade. Os jornais dariam a metade da primeira página. Ele era um dos maiores nomes de sua época. Se ele morresse, toda a cidade desceria para acompanhar o enterro. E só se falaria na sua morte. O retrato do meu pai em todos os jornais. Mil carros acompanhando. Melo Viana, o vice-presidente, fora ao enterro de Roberto; com mais razão, ao do meu pai.
Todos os filhos se revezavam na cabeceira do meu pai. Lembro-me de que, na primeira noite, saí um momento e fui caminhar um pouco na calçada, diante da casa. Não queria ter sono. E ouvia a voz do meu pai: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E o sono lhe parecia uma desfeita à própria dor ou ao jovem morto. Eu também não queria ter sono. Na calçada, olhei a nossa casa. Na treva, e tão branca, a casa era uma grande máscara exânime. Na treva.
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Um comentário:
Adorei! :)
Nelson gênio.
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