quinta-feira, 25 de junho de 2009

Capítulo 79 - A Menina sem Estrela

79-25/06
Vocês se lembra de que, em Hamlet, acontece o seguinte: — de repente, o palco shakespeariano é invadido por um ban­do de comediantes. E os recém-chegados fazem piruetas, dão saltos mortais, dançam e declamam. A platéia fica atônita de be­leza. É o teatro dentro do teatro, a poesia dentro da poesia, o sonho dentro do sonho.
Eis o que eu queria dizer: — nas velhas redações subde­senvolvidas, havia também uma simultaneidade igualmente má­gica e igualmente fascinante. De um lado tínhamos os funcio­nários da casa, redatores, repórteres, contínuos; de outro lado, todo um elenco de visitantes estranhíssimos. Essas caras, que não paravam de entrar, de sair, tornavam a vida do jornal cáli­da como um sonho.
Quando A Manhã estava na rua Treze de Maio, vivia cheia de políticos, atrizes, camelôs, aleijados, arquitetos e prostitu­tas. Na redação de hoje, esta troupe seria inviável. A visita é es­cassa e filtrada. Ferozmente seletiva, a portaria barra o pobre-diabo, o enxota, da maneira mais ignominiosa.
Outrora era possível um demente entrar numa redação e lá permanecer como um funcionário. Lembro-me de uma ve­lha que invadiu A Manhã e berrava: — “Eu sou a consciência da República”. E o pior é que ninguém se espantava. Um contí­nuo passou uma hora de grave conversa com a louca. Ela não dizia outra coisa: — “Eu sou a consciência da República”. E os mutilados, e os portadores de doenças hediondas? De vez em quando, alguém vinha me cochichar: — “Aquele é leproso”.
E, assim como na peça shakespeariana, existiam duas vi­das, duas realidades na redação antiga. Certa vez, foi lá o professor Mozart. Dizia-se profeta e queria fazer milagres, apenas. De um dia para o outro, a redação virou um pátio de milagres. Paralíticos, cegos, dementes, sujeitos que ardiam em chagas. Lembro-me de uma criança que, de repente, começou a cho­rar, não lágrimas, mas pus. E o professor uivava para os paralíti­cos: — “Anda, anda! Vamos, anda!”. Eu estava lá, aterrado. E, de repente, o entrevado caminhou. Deu um passo, dois, três. Vendo o próprio milagre, o professor começou a chorar.
Numa redação, repito, entravam os tipos humanos mais in­verossímeis. Até esquimó apareceu e, uma tarde, entro e quem vejo eu, em cima de uma mesa, apavorado com as caras que o cercavam? Um pingüim. Vinha do pólo, não sei de onde e es­tava lá. Mas como eu ia dizendo: havia uma figura obrigatória no velho jornal: — o canalha.
Até hoje, não sei por que o jornal fascinava os pulhas da velha geração. Eram escroques, punguistas, cáftens, gatunos. To­dos os dias iam para a redação e se tornavam amigos, íntimos, de todos nós. De vez em quando, sumia uma capa, um relógio e já se sabia: — era um deles. E coisa curiosa. Aparentemente, os canalhas eram semelhantes, em tudo, ao homem de bem; ou por outra: — eu diria mesmo que, via de regra, eram mais do­ces que o homem de bem.
Três ou quatro não saíam de A Manhã. E quando meu pai fundou a Crítica, outros três ou quatro passavam o dia e a noi­te na Crítica. Um dia, depois do almoço, vou para a redação. Na porta encontrei o canalha. Era ali na rua do Carmo, quase esquina de Sete. Março de 1930. Getúlio, o suicida, já conspira­va. Roberto morrera havia dois meses. E quando eu ria pensava em Roberto. Tinha vergonha de não sofrer como devia.
O canalha (um mulato dionisíaco) pergunta: — “Já sabe?”. Paro: — “O quê?”. E ele: — “Seu pai está doente”. Sobe comi­go e vem dizendo: — “Sentiu-se mal depois do almoço”. Sinto no outro uma euforia cruel. Ligo para casa. Dizem: — “Comeu e passou mal. O Sílvio Moniz está aqui”. Desligo e começo a pensar na morte.
Venho de táxi para casa. Quando era menino, eu vivia pen­sando: — “Se alguém morrer na minha família, me mato”. Nas minhas meditações no fundo do quintal (sempre junto ao tan­que de roupa), não queria acreditar na morte dos meus pais ou dos meus irmãos. Os outros morriam e nós jamais. Mas, se alguém tivesse de morrer, que fosse eu. Na morte de Roberto, faltou-me o fervor do menino. Pensei muitas vezes: — “Devia me matar”.
Sempre achei e, o que é pior, ainda acho que cada um de nós tem, na vida, três ou quatro seres decisivos. Se um deles morre, não devemos sobreviver, eis a verdade, não devemos sobreviver. A vida continua, mentira. Morremos com o ser ama­do. E se o outro ser amado morre, novamente morremos. Não há pior degradação do que viver pelo hábito de viver, pelo ví­cio de viver, pelo desespero de viver.
Morávamos então na rua Joaquim Nabuco. O dr. Sílvio Moniz, clínico que nos fora recomendado por Edmundo Bitten­court, já saíra. Alguém me disse: “Derrame”. Subo para ver meu pai. Na morte de Roberto, em plena madrugada, meu pai repe­tia: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E, porque teve sono, ele se dilacerou de vergonha e de pena. E amou mais o filho, porque teve sono.
Meu pai estava tão quieto, e era tão manso, tão doce o seu coma. Também o amei mais porque eu não estava sofrendo, e não sentia a compaixão que queria sentir. Não voltei para o jor­nal. Se meu pai morresse, seria um abalo na cidade. Os jornais dariam a metade da primeira página. Ele era um dos maiores no­mes de sua época. Se ele morresse, toda a cidade desceria para acompanhar o enterro. E só se falaria na sua morte. O retrato do meu pai em todos os jornais. Mil carros acompanhando. Melo Viana, o vice-presidente, fora ao enterro de Roberto; com mais razão, ao do meu pai.
Todos os filhos se revezavam na cabeceira do meu pai. Lembro-me de que, na primeira noite, saí um momento e fui caminhar um pouco na calçada, diante da casa. Não queria ter sono. E ouvia a voz do meu pai: — “Estou com sono. Meu filho morreu. Eu não devia ter sono”. E o sono lhe parecia uma des­feita à própria dor ou ao jovem morto. Eu também não queria ter sono. Na calçada, olhei a nossa casa. Na treva, e tão branca, a casa era uma grande máscara exânime. Na treva.

Um comentário:

Paula Nogueira disse...

Adorei! :)
Nelson gênio.