terça-feira, 30 de junho de 2009

ESCORPIÃO DE BANHEIRO

Viviam como cão e gato. E eram brigas diárias e tremen­das. Numa das vezes, foi até interessante: — Belchior deu um murro, de mão fechada, na testa de Elvira. A pequena virou por cima das cadeiras. Ergueu-se, ainda vesga da pancada e da que­da. Mas Mo teve dúvidas maiores: — apanhou o aparelho de rádio e o varejou contra Belchior. Este abaixou-se e o projétil acertou em cheio na cristaleira, com um estrondo inimaginável. A esta altura dos acontecimentos, os vizinhos em massa inva­dem a casa. A própria radiopatrulha encostava na porta. Subju­gados, os cônjuges ainda esperneavam. Belchior dava arrancos frenéticos:
— Te arrebento! Te parto a cara!
E ela, feito uma fúria:
— Palhação! Cretino!
Para os vizinhos, a pancadaria recíproca e cotidiana era mo­tivo de fascinação e, além disso, de náusea. Há cinco anos leva­vam essa vida e ninguém entendia que continuassem juntos. Ponderaram:
— Vocês não combinam. Por que não se separam?
Ambos concordavam:
— É o golpe! É o golpe!
Mas a separação vinha sendo adiada através das semanas, dos meses e dos anos. Dir-se-ia que, apesar das incompatibili­dades, existia entre os dois um vínculo qualquer, misterioso e fatal. Por fim, tanto os parentes de Belchior como os de Elvira já rosnavam:
— Isso é falta de vergonha! De brio! No duro que é!

MARINA

Até que, um dia, Belchior conheceu Marina. Com esse no­me de letra de Dorival Caymmi, era um amor de pequena, miú­da e linda, doce de sentimentos e de modos e, de resto, educa­díssima. Acostumado com Elvira, que era violenta, desbocada e neurastênica, adorou a suavidade de Marina. No segundo ou terceiro encontro, a menina pergunta: — “Você é casado?”. Ele hesita na resposta. Mas toma coragem e diz:
— Olha, meu anjo. Quero ser leal contigo. Não sou casa­do, mas vivo com uma pessoa assim, assim, separada do mari­do. Compreendeu?
— Compreendi.
E ele:
— Aliás, quero te dizer o seguinte: — essa pessoa é uma jararaca, uma lacraia, um escorpião de banheiro. Não gosta de mim, nem eu dela. Antes de te conhecer, eu já estava resolvido a chutá-la. E, agora que te conheço, mais do que nunca, natu­ralmente.
Marina deu-se por satisfeita. No dia seguinte, Elvira sai de­pois do almoço. Quando volta, ao cair da noite, vê escrita, na parede, a lápis, com a letra do marido, a seguinte mensagem: “VAI-TE PARA O DIABO QUE TE CARREGUE. ADEUS!”.
Elvira, que abominava o companheiro, devia achar o fato uma delícia. Em vez disso, porém, rolou no chão, espumando em ataques. Quando os vizinhos entraram de roldão, atraídos pela gritaria, ela apontou a parede: — “Olha o que aquele ca­chorro escreveu!”. Os vizinhos lêem e relêem atônitos. Elvira soluça:
— Mas ele há de voltar! — E repetia com uma certeza faná­tica: — Há de voltar!

FELICIDADE

Consumada a separação, a felicidade de Belchior foi uma dessas coisas convulsas e patéticas. Como primeira medida, ba­teu o telefone para Marina:
— Estou livre! Livre!
Do outro lado da linha, a pequena chorava:
— Deus te abençoe!
De noite, Belchior, ainda delirante, reuniu os amigos no bar. Bebeu toda a noite. Fez, aos berros, as confidências mais comprometedoras. Em dado momento, com o olho injetado e a bo­ca torcida, esbravejava, numa reminiscência de leitura:
— A consciência não existe! A única consciência que eu re­conheço é o medo da polícia! — Alarga o colarinho, afrouxa o laço da gravata e uiva: — Foi o medo da polícia que me impe­diu de matar Elvira!
Voltou para casa carregado e vomitando nos amigos.

O ANJO

Lera na adolescência um romance ordinaríssimo, que se cha­mava Anjo de redenção. E agora, vendo Marina e sua meiguice consoladora, fez sua tentativa literária ao dizer: — “Tu és o meu anjo de redenção!”. Ela baixou os olhos, arrepiada, e disse:
— Eu faço o que posso!
Apresentou a menina aos pais. E, depois, veio sôfrego sa­ber a opinião dos velhos. A mãe beija-o na testa:
— Uma simpatia!
E o pai, grave:
— Dessa gostei!
Mais quinze dias e houve o pedido oficial. Na tarde em que ficaram noivos, Belchior leva a pequena para a varanda; drama­tiza: — “Quando te conheci, estava na seguinte situação: ou ma­tava ou me matava. Tu me salvaste a vida”.

O IDÍLIO

Pareciam feitos um para o outro. De quinze em quinze mi­nutos, Belchior descobria uma nova afinidade com a menina. De resto, coincidiam em tudo, de uma maneira impressionan­te. Gostavam dos mesmos filmes, das mesmas músicas, das mes­mas paisagens e dos mesmos doces. Ele, que fora tão infeliz na sua anterior experiência sentimental, a ponto de quebrar a ca­beça da amante com um rádio de pilha — agora parecia nave­gar num mar ou, por outra, num lago azul. Viviam sem rixas, sem bate-bocas, numa calma talvez parecida com o tédio. Pouco a pouco, porém, sem que Belchior percebesse, uma certa melancolia se insinuou na sua alma. A noiva acabou estranhando:
— Estou te achando meio assim, triste.
— Eu?
— Você. Anda meio esquisito. Que é que há?
Protestou, rubro:
— Esquisito por quê? Pelo contrário. Nunca me senti tão bem. — Pigarreia e exagera: — “Eu sou o sujeito mais feliz do mundo. Tenho você, quer dizer, tenho tudo”.

A OUTRA

E, de fato, Belchior era ou devia ser o sujeito mais feliz do mundo. Amava e era amado, livrara-se de uma mulher histérica e desequilibrada, que lhe arruinava a vida, a alma, o fígado. Pois bem. Apesar disso, ou por isso mesmo, deu para andar depri­mido, insatisfeito. Explicava vagamente: — “Deve ser esgota­mento”. Nas proximidades do casamento, encontrou-se com um velho amigo, o Peçanha. Este o chamou de lado:
— A Elvira anda jurando que você volta! Diz que quer ser mico de circo se você não voltar!
Pulou, malcriadíssimo:
— Ela é besta! Não quero ver essa cara nem pintada! Isola!
Estaria certa? Estaria errada? Ninguém podia saber. Havia, porém, quem julgasse ver, no caso Belchior e Elvira, um desses sombrios mistérios do sexo, sem explicação possível.

NOITE DE NÚPCIAS

Finalmente, há o casamento. Na igreja, quando Marina pas­sou a caminho do altar, houve um deslumbramento. Na sua graça frágil e intensa, era uma imagem realmente inesquecível. Após a cerimônia, voltam os dois para a casa dos pais de Marina, on­de passariam a residir. Às onze horas, despede-se o último con­vidado; os velhos, depois de abençoarem o casal, recolhem-se. Marina, transfigurada, sussurra: “Espera um pouco que eu te cha­mo, Belchior. Espera”. Nesse instante, bate o telefone e Belchior, surpreso e inquieto, vai atender. Era Elvira. Está dizendo:
— Olha! Eu te espero. A chave está debaixo do tapetinho. Vem, agora!
E desligou. Belchior encostou-se à parede, com a vista tur­va e as pernas bambas. Houve, nele, uma brusca e violenta nos­talgia da mulher que era o seu ódio e seu desejo. Naquele justo momento Marina entreabriu a porta e avisou:
— Pode vir, meu bem!
Ele, porém, não pensava mais na noiva. Dir-se-ia um mag­netizado. Sem rumor, desliza pela escada, rente à parede. Meia hora depois, desce de um táxi na porta da antiga residência. In­sinua a mão debaixo do capacho, apanha a chave. Entra. Em pé, no meio da escada, com o quimono rosa em cima da cami­sola, os pés nas sandálias de arminho, Elvira o espera. Não há uma palavra entre os dois. Belchior enlaça a pequena e, com raiva e gana, a beija muitas vezes. Então, Elvira ri, pendendo a cabeça: — “Meu!”.
E foi esse orgulho que a perdeu. As mãos de Belchior des­cem e se fecham sobre o pescoço macio. Aperta até o fim, sem saber que a estrangulava, sem saber que a estava matando. De­pois, abraçado ao cadáver, diz arquejante:
— Não te enterrarei nunca! Ficarás comigo aqui!
E pousa a cabeça sobre o coração que não bate mais.

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