quarta-feira, 1 de julho de 2009

A INOCENTE

Sempre enxergara otimamente. Dizia mesmo:
— Graças a Deus, tenho uma vista fantástica!
A namorada fazia insinuação:
— Você, meu filho, enxerga até demais!
Riam os dois. A menina o acusava de ver maldade onde não havia tal. Num ciúme danado de tudo e de todos, Balduíno fa­zia toda sorte de reclamações.
— Pensa que eu não vi, hein?
E ela:
— Mas viu o quê, filho de Deus?
— Você olhando para aquele cara!
— Ah, que blasfêmia! Olha, Balduíno, olha que Deus castiga!
Um dia, ele começou a ter uma série de perturbações vi­suais. Eram pequenos pontos na visão que, com o correr dos dias, se multiplicavam. Assustou-se. E vamos e venhamos: quem não tem medo de ficar cego? Correu para o oculista. Escolheu um bem caro, na prevenção de que a tabela alta lhe significasse uma esmagadora eficiência clínica. O homem o submeteu a um milhão de exames.
No fim de tudo, chegou à conclusão:
— Vamos tirar os dentes!
— Todos?
— Todos.
Assoviou:
— Papagaio!
Em quatro ou três sessões, ficou com a boca vazia; uma boca de velha. E o pior ainda não foi isso: o pior é que não havia um só foco dentário, um único granuloma, nada. Ficou furioso: disse horrores e foi em cima do especialista. Com a mão na frente, escondendo publicamente os beiços murchos, con­cluiu:
— Fizeram comigo um papel sujíssimo.

UM HOMEM TRISTE

Não apareceu mais para a namorada. Ela mandava recados, verdadeiros sos, mas Balduíno foi irredutível. Desenvolveu-se, nele, uma altivez, uma dignidade, um pudor de desdentado. A mão estava sempre na frente, servindo de folha de parreira. Aprendeu a difícil arte de não sorrir, em hipótese nenhuma. Ninguém mais triste, ninguém mais fúnebre. Ele, subjugado pelo complexo de desdentado, não olhava para as mulheres. Ia de casa ao trabalho e vice-versa, numa ver­gonha que já era doença. Que poderia mesmo transformar-se em loucura. Reclamavam:
— Toma jeito, rapaz! Sossega!
Ele, porém, sem nada dizer, tramava a própria salvação. Recorreu a um dentista, sempre na base de que “o mais caro é o melhor”. Quando soube que o dr. fulano cobrava tre­zentos cruzeiros a hora, esfregou as mãos de contente. E fez o comentário:
— Esse é dos meus!
Lá compareceu, no sonho de uma dentadura dupla. Fi­zeram um orçamento principesco: doze contos! Segundo seus cálculos, uma dentadura de doze contos seria a mais cara do Rio de Janeiro. Calculava: “Vou ficar com uma boca de anjo!”. O dentista chamou um protético, tiraram os moldes, e Balduíno, na cadeira do dentista, pedia uma dentadura ge­nial, que fosse uma obra de arte, para já. Ponderaram:
— Não pode ser assim, não, que diabo!
— Ué!
— Claro! Primeiro tem que deixar as gengivas murcha­rem. Depois, então, é que tiraremos o molde.

A ESTRÉIA

No dia que saiu do gabinete com o aparelho, parecia ter um ovo na boca. Gemia:
— Como dói esse troço!
Fora, porém, divertido. O dentista explicara que nos pri­meiros dias era assim mesmo. De qualquer maneira, e embora com o céu da boca em petição de miséria, andou pela cidade com outra aparência. Olhava de cima os demais, como se via­jasse num andor. Essa sensação de andor não o abandonou mais. Seu horário normal de entrar em casa era nove horas. Apare­ceu às onze, depois de circular vastamente. Ainda não podia fa­lar direito, mas usou o sorriso de maneira abundante. Uma mo­ça que, aliás, ia acompanhada, talvez pelo marido, retribuiu o seu olhar. Ele voltou para casa com uma certa pena, e fazendo a seguinte reflexão: “Ah, se não estivesse acompanhada!”. Te­ce que mostrar à família os dentes novos. Mandavam:
— Ri!
Ele ostentava, deleitado, a superabundância de dentes. Nu­ma última dúvida, fez uma enquete com o pessoal:
— Está parecendo postiço, está?
Houve uma unanimidade feroz. Todos afirmavam que não, que não pareciam absolutamente postiços. E uma coisa o em­polgava de maneira particular: — o preço do serviço, que atin­gia o total invejável de duzentos contos.

CONQUISTADOS

Mudou por completo. Dir-se-ia outra pessoa, seja física ou psicologicamente. Ria de tudo, ria por coisa nenhuma. Às ve­zes, diante de uma piada boba ou idiota, fazia um escândalo:
— Essa é a maior! Essa é a maior!
Queria um pretexto para o riso escancarado.
As senhoras, meio assustadas com essa exuberância, diziam assim:
— Você deve gostar de uma boa pândega!
Ele não dizia que sim, nem que não. Antes, fugia das mu­lheres, não as olhava. Agora, em função dos dentes novos, não podia ver uma pequena: ou dava em cima ou dizia que dava em cima. Não importava muito o namoro, a conquista. O que inte­ressava realmente era a possibilidade de surgir como um galã irresistível ante os conhecidos. Soprava para um, para outro:
— Viste aquela?
— Vi.
— Que tal?
E o amigo:
— Um espetáculo!
Ele suspirava:
— Não me dá uma folga. O dia todo. Assim não é possível.
Qualquer mulher que passasse por ele, já sabe. Apregoava logo:
— Que bola ela me deu, viste?
Fazia questão, sobretudo, das sérias, das inatacáveis e, em especial, das casadas. Contava episódios arrepiantes em meio da admiração geral. Alguém argumentava:
— Mas não é possível, não pode ser!
— Por quê, ora essa?
E o outro:
— Porque eu conheço aquela senhora, é honestíssima. Doi­da pelo marido!
Balduíno recostava-se na cadeira: atirava, no meio dos par­vos, a sua teoria predileta:
— A mulher é séria até o momento em que deixa de ser!

BATOM NO LENÇO

Na rua José Antunes, onde ele morava, veio residir d. Bran­ca, casadinha de fresco. Era doce, linda e tudo o mais que se possa atribuir a uma jovem em lua-de-mel. Com cinco dias de casados, ela e o marido quase não saíam. Uma vez ou outra, quando o esposo não estava em casa, d. Branca surgia um mo­mento na janela. Numa dessas vezes, coincidiu que Balduíno passasse. De noite, na esquina, ele deblaterava:
— É o cúmulo!
— O quê?
Parecia realmente enjoado:
— Eu não diria nada se, enfim, tivesse mais tempo de casa­da... Mas não fez nem quinze dias e quando acaba...
Contou, para o auditório embevecido, a história abomi­nável:
— Só vocês vendo a bola, meninos, que ela me deu! Uma Pouca-vergonha! Por isto é que não me caso; porque não sou besta!
Durante seis meses não fez outra coisa. Deixou mesmo de se interessar pelas outras mulheres. Era como se só existisse a pobre da d. Branca na face da Terra. Cada noite trazia uma no­vidade e concluía sempre com um comentário:
— Não se pode fiar em mulher nenhuma! É tudo a mesma coisa!
Seu maior êxito, porém, foi quando exibiu, para a roda de amigos desocupados, o lenço sujo de batom. Lambia os beiços, o miserável; chamava os amigos para ver e sondava:
— Vê se o batom já saiu, vê!
Os outros, em brasas, queriam saber:
— Mas que foi? Que foi?
Ele, teatral, revelou, baixando a voz e olhando para os la­dos, que dera um beijo tremendo na infeliz senhora. Queriam detalhes, perguntavam que tal etc. E ele, já num princípio de tédio, de fastio daqueles lábios de mulher:
— Mais ou menos.

O CÂNCER

Por pura coincidência ou castigo sobrenatural? Eis o que ninguém saberá jamais. O certo é que a notícia correu: “Balduíno está com câncer na língua!”. Foi a tudo quanto era médi­co, mas não evitou a operação. Um dia, o marido de d. Branca invadiu o quarto do moribundo. Recebera uma carta anônima e, dentro do envelope de ofício, um lenço sujo de batom. Fora de si, queria saber se era verdade ou se... Balduíno estava de novo sem os dentes, a boca de velho. O marido perguntava: “É verdade? Diga! É verdade?”.
Sem língua, não podia falar. Pediu um lápis; já no limite en­tre a vida e a morte, escreveu:
— É verdade.
Estava morrendo sem dentes e sem língua. O marido par­tiu. A esposa estranhou que ele chegasse cedo e ia fazer uma observação amiga qualquer. O pobre-diabo, então:
— Teu amante confessou.
D. Branca quis gritar, fugir, mas nem uma coisa, nem ou­tra. Imóvel e muda, recebeu quatro tiros. Seu medo se extin­guiu na morte.

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