domingo, 19 de julho de 2009

ESPOSA BEM TRATADA

O Guedes avisou:
— A Luci é dureza, percebeste?
Miranda virou-se:
— Dureza? E por que dureza?
O outro foi explicando: — “É séria por natureza e, além disso, o Braga é o melhor marido do mundo, caxias até debai­xo d’água. Tu achas que ela vai trair um marido que nunca lhe fez nada, que a trata como uma rainha? Pensa bem”.
Impressionado, Miranda balbucia:
— Eu não sabia que o Braga era assim. E deve ser o único, porque todos os maridos que eu conheci, até agora, são uns bes­talhões de fivela!
Então o Guedes, que conhecia o casal, que lhe freqüenta­va a casa, que almoçava e jantava lá de vez em quando, entrou a traçar o retrato daquele esposo extraordinário. Entre outras coisas que abalaram o Miranda, revelou o seguinte: — o Braga jamais traíra a mulher, jamais. Insistiu:
— Então achas que uma mulher tão bem tratada vai trair?
O outro, no seu despeito e na sua frustração, rosna: — “Quem sabe?”. Guedes pulou:
— Quem sabe, uma ova! E vou te dizer o seguinte: — que­res saber o que é mulher séria? — Pausa e conclui: “Séria é a mulher bem tratada. Portanto desiste, rapaz, porque desse ma­to não sai cachorro, ou coelho, sei lá!”.

O APAIXONADO

Miranda era conhecido como o sujeito que tinha amores imortais, de quinze minutos. Mas a paixão pela esposa do Braga parecia um sentimento inédito na sua vida. Há três meses que gostava da Luci e só da Luci. Conhecera-a numa festa em casa de família. Podia ter convidado a pequena para dançar. Mas era de uma timidez agressiva em certas ocasiões. Apresentado à jo­vem senhora, mal pôde gaguejar um “muito prazer”, e foi só. Mas não lhe tirava os olhos de cima e não sossegou enquanto não se sentou perto de Luci. Ela conversava com outra senhora e o assunto era parto. Miranda ouviu a pequena dizer:
— Graças a Deus, nunca levei um ponto!
Referia-se aos próprios partos, que eram simples, fáceis, qua­se indolores. E Miranda, que não entendia nada de maternidade, achou que o fato de uma parturiente não levar ponto constituía um privilégio altíssimo. Saiu da festa febril de paixão. Luci era do “tipo gordinho” que, desde menino, o deslumbrava. Dia após dia, ele viveu em função desse amor. Abriu o coração com o seu amigo Guedes. Este o dissuadiu. Miranda considerou o ra­ciocínio do amigo e levantou-se:
— Acho que você tem razão. O golpe é desistir.
De pé também, o Guedes bateu-lhe no ombro:
— Arranja outra. Mulher é que não falta. Escolhe uma que não seja bem tratada pelo marido.

O MILAGRE

Dois dias depois, estava o Miranda no escritório, batendo umas faturas, numa depressão medonha. Numa mesa perto, o Azevedo, que era um velho patusco, estava dizendo, com ale­gre ferocidade: — “Eu acredito em milagre. E digo mais: — só acredito em milagre”. Então, na sua tristeza, o Miranda pensou que, para ele, o milagre seria o êxito no seu amor por Luci. Pois bem: — neste justo momento, o boy o chama ao telefone. Le­vanta-se e atende. Ouve uma voz feminina, que diz:
— Sabe quem está falando?
Confessa:
— Não, não sei. Quem é?
Resposta:
— Luci
— Que Luci?
E a outra, provocante:
— A Luci em que você está pensando.
O trote pareceu-lhe evidente. Foi grosseiro no telefone:
— Sossega o periquito. E das duas uma: — ou diz quem é ou desligo.
Do outro lado da linha, a pequena ria. E só uns cinco mi­nutos depois é que Miranda convenceu-se em definitivo: era Luci, sim, a fabulosa Luci, que o procurava e ligava para ele. No maior deslumbramento de sua vida, encheu-se de dedos. Ela ria, ainda:
— Você pensa que eu não percebo que você não tira os olhos de cima de mim? Podia ter me telefonado, ora essa, e por que não?
O inepto pergunta: — “E seu marido?”. Respondeu: — “Meu marido não está sempre em casa”. No fim de meia hora de conversa, Miranda, num arranco de coragem suicida, propõe-lhe um encontro, que a menina aceita com uma deliciosa natu­ralidade. Ela fez, porém, uma ressalva:
— Tem que ser num interior.
Admirou-se: — “Como num interior?”. Com certa impa­ciência, a outra põe os pingos nos is: — “Você não tem um apar­tamento?”. O pobre-diabo quase agonizou no telefone. Desvai­rado, promete: — “Arranja-se. É o de menos”. Larga o telefone com as pernas bambas, a vista turva. Senta-se, aperta a cabeça entre as mãos e procura pôr ordem nas idéias.
Pensa: — “Deve ser sonho ou, então, é o milagre”. Procu­ra o Guedes, conta-lhe tudo:
— Entrou de sola, compreendeste? E fiquei de telefonar, de manhã, dando o endereço do apartamento.
O Guedes, atônito, via ruir por terra a sua teoria da “espo­sa bem tratada”. Miranda, aflito, cutucava-o:
— Temos que arranjar um apartamento, digno da “Rainha de Sabá”.

ABERRAÇÃO

Miranda conseguiu o que queria com o Lobato. Este, garo­to milionário e irresponsável, montara um apartamento que só faltava falar. Tinha lá de tudo, inclusive uma geladeira suntuária, monumental. O Lobato entrega-lhe a chave e aconselha: — “Mostra-lhe a geladeira!”. E justificava: “Mulher se impressio­na muito com geladeiras!”. Miranda embolsa a chave e bufa: — “Tu és uma mãe”.
No dia seguinte pela manhã, diz à pequena, pelo telefone, o endereço do apartamento em Copacabana. Combinaram tu­do, de pedra e cal, para as quatro horas. Miranda continuava inseguro. Dizia até para o Guedes: — “Será que eu estou so­nhando?”. O Guedes, interessado no episódio, foi levá-lo até a esquina do edifício. Miranda chegou antes, uns quarenta mi­nutos na frente. Às quatro em ponto, Luci apareceu. Diante de­la, ele balbucia, numa embriaguez total:
— Minha gordinha!

O FIM

Duas horas depois, Luci está diante do espelho, pondo ba­tom. Tem um lírico lamento: — “Você me arranhou com a sua barba!”. E, então, ele vem por trás e, na sua felicidade, quer sa­ber: — “Tu gostas de mim?”. Luci vira-se: — “Eu não gosto de ti”. Ele não entende. Insiste: — “Nem um pouquinho?”. Ela res­ponde, doce, mas inapelável: — “Nada”. E ele atônito: — “Sé­rio?”. Encara-o: — “Seríssimo!”. Sentiu que Luci não mentia e, no seu despeito, segura aquela mulher possuída:
— Se não gostas de mim, por que traíste teu marido?
Luci ergue-se. Apanha a bolsa, enquanto o amante espera. Diz-lhe:
— Traí meu marido porque, todas as noites, ele tira a den­tadura e põe num copo.
Miranda não fez um gesto quando a pequena passou por ele, sem uma palavra, um olhar, um sorriso. Deixou-a ir e, só no quarto, sentou-se na extremidade da cama e pôs-se a chorar.

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