quarta-feira, 22 de julho de 2009

A ETERNA DESCONHECIDA

Interpelou os companheiros:
— Sou ou não sou bonito?
Um deles, tomando um refrigerante na própria garrafa, com um canudinho, aventurou:
— Não acho homem bonito. Pra mim, qualquer homem é um bucho.
Acharam graça, riram. Mas Andrezinho, no seu paletó cin­tado, camisa de um cinza quase roxo — insistia:
— Sou, sim. Sou pintoso. Qualquer mulher gosta de mim.
— Qualquer uma?
Enfiou as duas mãos nos bolsos:
— Qualquer uma.
Então, o Peixoto, que tomava uma média num canto do bo­teco, ergueu-se de sua mesa. Aproximava-se segurando um pe­daço de pão e ainda mastigando. A manteiga escorria-lhe do lá­bio como uma baba. Sentou-se perto do Andrezinho. De boca cheia, dizia:
— Vou te provar que és um mascarado. Queres ver?
Andrezinho recostou-se na cadeira:
— Duvi-d-o-dó.
E o outro:
— Ah, duvidas? Pois então escuta e vocês também: eu co­nheço uma pequena com quem tu não arranjarias tostão. Apos­to os tubos!
Andrezinho piscou o olho para os demais. Inclinou-se, gaiato:
— E se eu conquistar?
— Se você conquistar, pode me cuspir na cara.
Andrezinho levantou-se. Anunciou:
— Está no papo!

O BONITÃO

Perguntava por toda a parte: “Sou ou não sou bonito?”. A princípio, fazia isso por brincadeira. Mas, pouco a pouco, pe­la repetição, aquilo tornou-se um hábito, um vício. E aconte­cia, não raro, uma coisa interessante: apresentado a uma pes­soa, em vez de dizer “muito prazer”, perguntava:
— Sou ou não sou bonito?
Já o dominava um desses automatismos irresistíveis. Como fosse realmente bonito e, de resto, simpático, todos achavam graça. Sua sorte no amor era fantástica. Em casa, o telefone não parava. Eram pequenas, de todos os tipos e classes, que o per­seguiam. Dizia-se que até senhoras casadas, muito mais velhas que ele, o adoravam. E o jeito, meio terno, meio infantil, meio volutuoso, com que ele exaltava a própria aparência física, era um atrativo a mais. De resto, com o orgulho de narciso confes­so, Andrezinho implicava, na mesma vaidade, até peças de rou­pa. Mostrava meias de um amarelo extravagante, as gravatas ultracoloridas, os sapatos. E interpelava os conhecidos:
— Que tal? Viste a classe?
— Mais ou menos.
E ele, numa risada:
— Elas não me deixam!

MISTERIOSA

Até que, numa conversa de café, o Peixoto, que não gosta­va de Andrezinho, diz que conhecia uma fulana. Andrezinho sal­tou. Já com seu instinto de sedutor nato em polvorosa, pôs a mão no ombro do outro:
— Pra mim, não existe mulher inconquistável.
Peixoto, que tinha uma perna mais curta que a outra e era um sujeito taciturno e caladão, teimou: “Pra teu governo — es­sa cara é. Nem você, nem duzentos como você — arranja na­da”. Andrezinho esfregou as mãos, na euforia da conquista que supunha próxima e inevitável.
— Dá nome, o endereço, o telefone e deixa o resto por mi­nha conta.
Peixoto teve um meio riso sardônico:
— Pra quê? Dar nome pra quê? Nem adianta.
— Tens medo?
Ergueu-se o outro:
— Não interessa, não interessa. E te digo mais: não quero que um amigo meu banque o palhaço. Até logo.
Já ia saindo, com sua perna mais curta do que a outra. En­tão, o Andrezinho arremessou-se no seu encalço: “Mas como é essa fulana? Bonita?”. Peixoto parou na porta do boteco e rilhava os dentes:
— Se é bonita? Um espetáculo! Duzentas vezes melhor que a Heddy Lamarr! Mete a Lana Turner no chinelo!

ROMANCE

Nessa noite, Andrezinho custou a dormir. Estava acostuma­do a mulher bonita, à conquista fácil, mas o fato é que o Peixo­to soubera criar uma sugestão diabólica. Quem seria? Como se­ria? Imaginava um nome, um rosto ou, por outra: imaginava vá­rios nomes e um rosto múltiplo para a estranha. De manhã, es­covando os dentes, ainda pensava nela com apaixonada obsti­nação. No ônibus, veio com um amigo. Primeiro perguntou: “Sou bonito?”. Em seguida, admitiu:
— Estou interessadíssimo por uma cara que nunca vi mais gorda. Não é gozado?
Do escritório, ligou para o Peixoto: “Deixa de ser sujo e diz logo — quem é a fulana?”.
O outro divertiu-se cruelmente: “Mas você já não está tão cheio de mulher? Entupido de mulheres?”. E Andrezinho:
— Solteira, casada ou viúva?
Peixoto foi irredutível:
— Sossega, Andrezinho, que eu não vou te dizer nada. Ou tu me achas com cara de arranjar mulher pra ti?
Espantou-se:
— Mas olha aqui, seu animal! Não foste tu que tiveste a idéia? Foi ou não foi?
Concordou que sim, aduzindo: “Foi, sim. Porém, mudei de opinião, ora bolas! O que é que eu ganho com isso? Ganho alguma coisa? Nada!”. Andrezinho desligou o telefone, assom­brado. E fez o comentário para si mesmo:
— Que mágica besta!

IMAGINAÇÃO

De noite, encontraram-se no café. Andrezinho, com a ima­ginação em chamas, arrastou-o para um canto. Naquela noite, fez o monopólio do amigo, absorveu-o. Mandou vir cerveja, com a idéia de puxar por ele. E, de fato, à medida que ia bebendo, Peixoto abriu-se. Lambendo a espuma dos beiços, admitiu que a outra o conhecia. Andrezinho tomou um susto: “Ah, me co­nhece? E qual é a impressão dela a meu respeito?”. Semibêbado, Peixoto piscou o olho:
— Te considera um cretino de pai e mãe. Um idiota cha­pado!
Doeu-se:
— Mentira tua!
E Peixoto:
— Palavra de honra!
Continuaram a conversa, com um imenso consumo de cer­veja. Querendo pôr água na boca do outro, Peixoto exagerava: “É boa até depois de amanhã. Dessas que derretem edifícios!”. E, por fim, iluminado pela cerveja, praguejava, como um pos­sesso:
— Olha aqui, seu zebu! Eu sou aleijado, sei que sou! Mas a minha vingança, sabe qual é? — Parou, para tomar fôlego. — É que tu não vais conhecer essa pequena não, percebeste? — Na sua cólera de bêbado, investiu, querendo agredi-lo:
— Pelo menos essa, tu não vais conquistar, porque eu não deixo!

OBSESSÃO

Três ou quatro dias depois, o próprio Andrezinho reconhe­cia, em pânico, para os amigos mais íntimos: “Estou apaixona­do e não sei por quem. Vê se pode?”. Mandou emissários ao Peixoto, com apelos desesperados. Mas o outro foi irredutível; fazia um gesto de quem usa fecho éclair: “Sou um boca-de-siri”.
E acrescentava: “Andrezinho pode ser bonito lá pra o raio que o parta. Pra mim, não”. O fato é que, depois do seu desa­bafo no boteco, Peixoto mudara com Andrezinho. Cruzava os braços e fechava a fisionomia, quando o amigo ou ex-amigo vi­nha pedir:
— Diz quem é. Dá o nome. Só quero saber o nome. Nada mais.
Peixoto calcava a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Parecia hesitar. Inclinava-se:
— O nome não digo. Basta que você saiba o seguinte: é a melhor mulher do Rio de Janeiro. A melhor, percebeu?
Andrezinho partia desesperado. Os amigos, impressionados com sua obsessão, tentavam chamá-lo à ordem: “Quem sabe se não é gozo do Peixoto em cima de ti? Vai ver que é!”. Inca­paz de atender a qualquer raciocínio, ele explodia: “Eu só que­ro saber o nome. Basta o nome. Ou, então, um retrato!”. Já não se dizia “bonito”, nem “pintoso”. Admitia: “Acabo maluco, se já não estou”.
No emprego, passava horas imerso numa ardente e inútil meditação. Até que um dia recebe a notícia: ao atravessar uma rua, Peixoto morrera imprensado entre um bonde e um ônibus. Andrezinho uivou: “Morto?”. E soluçava: “Não é possível! Não pode ser!”.
Uns quinze minutos depois, entrava no necrotério. Ao ver o outro, na mesa, definitivamente silencioso, sentiu-se conde­nado a amar uma mulher que jamais conheceria. Enfureceu-se. Atirou-se ao cadáver, sacudia-o, gritando:
— Diz o nome! Quero o nome! Fala!...
Foi agarrado, dominado. Então, caiu de joelhos, no ladri­lho. Seu choro era grosso como um mugido.

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