quinta-feira, 23 de julho de 2009

NAMORADA CAOLHA

No meio da festa, seu amigo fez o convite:
— Vem beber, vem!
Geme:
— Não posso.
E o outro, que era um pau-d’água irremediável:
— Por quê?
Enfiou as duas mãos nos bolsos; e foi dizendo com um hu­mor misturado de melancolia:
— Beber, só se for água de bica e olhe lá! Mas não posso mesmo. Sou um caso sério. Eu me embriago até com água mi­neral.
Não mentia, era fraquíssimo para bebida. Jeová, porém, in­sistiu: “Deixa de ser chato! Vamos, sim!”. E fez a proposta: “Tu bebes um copo só, de chope, e pronto!”. Acabou indo. No fun­do do quintal, onde foram colocados dois barris com o respec­tivo gelo, bebeu o primeiro copo.
Começou a tornar-se inconveniente, pois a embriaguez as­sumia, nele, as formas mais desagradáveis e agressivas. Na altu­ra do décimo copo, Xavier, já fora de si, dá um uivo súbito. Que­rem agarrá-lo, mas ele se desvencilha num rapelão selvagem. Corre, gritando. Perfura os grupos sucessivos de convidados; pisa nas senhoras; empurra os homens. E, finalmente, na sala de visitas, cai de joelhos aos pés da filha do dono da casa e abraça-se às suas pernas soluçando:
— Casa comigo! Casa comigo! Eu te amo, te amo e te amo!
Foi um escândalo tremendo.

A ESTRÁBICA

Serenado o ambiente, seu Baltazar, que era o pai de Galatéia, chamou-a a um canto, ante a perspectiva nupcial que o in­cidente comportava. Seu Baltazar quis saber: “Esse rapaz gosta de ti? Gosta?”. A garota estava comovidíssima da cabeça aos pés. Conhecia Xavier vagamente, de cumprimento, e caíra das nu­vens como os demais. Com palpitações, falta de ar, admite:
— Parece que gosta, papai. O senhor não viu?
Xavier saiu de casa às carreiras. Foi direto ao emprego de Jeová, chega e desaba na primeira cadeira: — “Estou na maior tragédia da América Latina!”. Refere-se à confusão criada com a bebedeira de véspera. Jeová quis ser otimista: “Ninguém liga para o que um bêbado diz!”.
Ele protesta:
— Não liga uma pinóia! A Galatéia ligou, ouviu? E agora meu Deus? Como é que eu vou sair dessa encrenca?
Jeová simplificava: “Não há drama, rapaz! Você diz que não, que estava bêbado e pronto!”.
Xavier senta-se de novo, aperta a cabeça entre as mãos, qua­se chorando:
— O pior você não sabe! O pior é que, desde garotinho, eu tenho uma pena tremenda de mulheres estrábicas. Eu não sou ninguém diante de uma estrábica!
O outro fez espanto: “E daí?”.
Xavier continua:
— Daí o seguinte: eu sei de antemão, sei desde já, que eu não terei coragem de desiludir Galatéia. Ela pensa que eu estou apaixonado. Pois bem. E eu nunca serei capaz de dizer: “Olha, Galatéia, eu não gosto de ti, eu te acho um bucho!”.
Jeová prefere achar graça:
— Isso é carnaval teu! Literatura!

COMPROMETIDO

No dia seguinte, Xavier acorda tardíssimo. Levanta-se e es­tá no banheiro, escovando os dentes, quando aparece a irmã caçula: “Você está namorando a Galatéia?”. Toma um verda­deiro susto:
— Isola!
Toma o seu banho numa depressão medonha. Pouco de­pois, já pronto, ia saindo quando o telefone o chama. Era Galatéia. Numa atrapalhação mortal, ele gaguejou:
— Você me desculpe, Galatéia, mas é que ontem eu bebi demais...
Do outro lado da linha, a pequena está dizendo, com uma doçura atroz:
— Em absoluto! Desculpar de quê? — E baixa a voz: “Foi bom você ter bebido, só assim eu soube que você gosta de mim!”.
Houve uma pausa dramática. No seu pânico, Xavier emu­decia. Podia ter desfeito logo o equívoco. Faltou-lhe, porém, coragem. Balbuciou inteiramente alvar:
— Pois é, pois é.
Mas, quando desligou o telefone, encostou-se à parede, com vontade de chorar. Virou-se para a mãe e as irmãs:
— Estou fritíssimo!
Certo dia, Galatéia recebe um telefonema anônimo. Uma voz feminina dizia-lhe: “Olha aqui, sua caolha: o Xavier não gosta de você coisa nenhuma. Tem pena. Não é amor, é pena, ouviu?”. Galatéia tem um choque tremendo. Xavier vai encontrá-la em lágrimas. Sempre que Galatéia se comovia, seu estrabismo tornava-se mais violento. Interpelou o namorado: “Você gosta de mim ou tem pena?”. Diante daquele pranto de menina feia, Xavier tomou-se de uma dessas penas convulsas e mortais. Jurou por todos os santos: “Eu te amo, meu anjo! Juro que te amo!”. Galatéia, numa histeria, exige: “Jura pela vi­da de tua mãe!”. E para convencê-la de vez foi além:
— Amanhã eu vou pedir a tua mão. Avisa a teu pai, a tua mãe, percebeste?

TRAGÉDIA

Ficaram noivos. Galatéia era, quase, a mulher mais feliz do mundo. Digo “quase” porque o telefonema anônimo marcara o seu espírito, criara nela o complexo do estrabismo. Por vezes experimentava uma espécie de alucinação e julgava ouvir uma voz feminina: “Caolha! Sua caolha!”. Passou a usar óculos escu­ros. Foi então que a mãe e irmãs de Xavier tiveram a idéia: “Por que você não procura um oculista e não opera? Quem sabe?”.
A possibilidade de sanar o defeito deslumbrou-a. Pedindo segredo à sogra e às cunhadas, consultou um oculista. Este foi taxativo: “Tem remédio, sim. É até uma operação simples”. Galatéia volta para casa, desvairada. Ela desejaria, porém, poder fazer uma surpresa ao noivo. E, súbito, ocorre uma coincidên­cia: por determinação da firma onde trabalhava, Xavier teria de passar um mês em São Paulo antes do casamento. Voltaria na véspera. Galatéia viu ali o dedo da Providência Divina.
Pois bem. Ele partiu um dia, às cinco horas da manhã, de automóvel; e, às dez horas, a pequena foi operada. Passa o tempo.
Xavier, que deveria passar apenas um mês em São Paulo, só pôde regressar, espavorido, na manhã do casamento. E mais: veio do aeroporto diretamente para a pretoria. Tem, então, a surpresa: viu diante de si uma Galatéia não mais estrábica, uma Galatéia de olhos normais. Assombrado, não sabe o que pen­sar, o que dizer. Súbito, explode: “Não me caso mais, ouviu? Não me caso mais!”.
Pensou-se, a princípio, numa pilhéria de péssimo gosto. Mas ele, fora de si, continua:
— Enquanto você foi caolha, eu tinha pena. Agora só te­nho asco! Nojo!
Parecia ter perdido a razão. Desesperada, ela agarra-se ao noivo. Xavier se desprende num repelão feroz:
— Desinfeta!
Quiseram segurá-lo. Mas ele correu, sumiu. Mais tarde, o Jeová, aflito, vai encontrá-lo no café, meio bêbado. Dá-lhe a no­tícia à queima-roupa: Galatéia suicidara-se. Ele ri, sórdido:
— Ótimo, ótimo! Traz mais um chope, garçom!

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